Inteligência Epistêmica

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terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Construção do Objeto Turístico - Alessandro de Melo

IV SeminTUR – Seminário de Pesquisa em Turismo do MERCOSUL
Universidade de Caxias do Sul – Mestrado em Turismo
Caxias do Sul, RS, Brasil – 7 e 8 de Julho de 2006
A construção do objeto turístico: diálogos com a epistemologia de Gaston Bachelard e Pierre Bourdieu.

Alessandro de Melo
IESAP – Instituto de Ensino Superior do Amapá
Mestre em Educação Escolar – UNESP; Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais – UNESP; Professor da Disciplina “Antropologia Cultural aplicada ao Turismo” – IESAP; Coordenador de Pós-Graduação.

Resumo
O artigo apresentado tem o intuito de contribuir para o desenvolvimento do campo epistemológico do Turismo a partir da metodologia desenvolvida pelo filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) e pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2000). Esta metodologia, denominada “construção do objeto científico”, ajuda a compreender que os objetos científicos não podem ser trabalhados à luz do empirismo, mas, ao contrário, os pesquisadores precisam vencer a etapa empírica, superá-la, para então, através da dialética teoria-aplicação, construir seu objeto de maneira consistente e rigorosa cientificamente.

Partindo desta metodologia analisa-se o objeto turístico “Animal Kingdom” através da construção realizada por Marutschka Moesch em seu livro “A produção do saber turístico”.

Palavras-Chave: Epistemologia do Turismo; construção do objeto turístico; Gaston Bachelard; Pierre Bourdieu.

Introdução
O objetivo deste artigo é contribuir na tarefa de desenvolver conhecimentos pertinentes à epistemologia do Turismo, visando com isso alavancar este campo do conhecimento, especificamente através da formulação de uma metodologia de pesquisa em Turismo, baseada nas metodologias da “construção do objeto científico”, proposta do filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), e da “construção do objeto sociológico”, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2000).

Pretendemos demonstrar com este texto a possibilidade de fazer o intercâmbio da teoria bachelardiana, oriunda das reflexões sobre a filosofia das ciências, para as reflexões epistemológicas e metodológicas do Turismo.

Para realizarmos de maneira ainda mais incisiva o intercâmbio com o Turismo, iremos analisar a metodologia da “construção do objeto sociológico”, formulada por Pierre Bourdieu, especificamente na obra “A profissão de Sociólogo” (BOURDIEU; CHAMBOREDON, 1999).

Após isso iremos abordar, ainda que de forma exploratória, as possibilidades de “construção do objeto turístico”, demonstrando as possibilidades desta metodologia para o Turismo, aplicando-a à análise do objeto turístico produzido por Moesch (2002), a respeito de “Animal Kingdom”, parque temático produzido por Walt Disney.

Com este percurso metodológico teremos delineado uma contribuição significativa para o aprimoramento do campo epistemológico do Turismo, colaborando com as pesquisas neste campo.

Bachelard e a “construção do objeto científico”

Gaston Bachelard (1884-1962) é reconhecido como um dos principais nomes da
epistemologia das ciências do século XX, além de ser reconhecido na área das filosofias e da poética. Produziu uma obra que pode ser dividida, ainda que de forma didática, em duas: a obra diurna e a obra noturna, como o próprio autor expressa no seguinte trecho da obra Poética do Espaço:

“Demasiadamente tarde, conheci a boa consciência, no trabalho alternado das imagens e dos conceitos, duas boas consciências, que seria a do pleno dia e a que aceita o lado noturno da alma.” (JAPIASSÚ, 1976, p.47).

Levando-se em conta tal perspectiva do próprio autor, seus analistas passaram a dividir sua obra relativa à epistemologia e história das ciências como diurna e a sua outra faceta, que o remete ao estudo no âmbito da imaginação poética, dos devaneios, dos sonhos, foi denominada de obra noturna.

Pretende-se deter neste artigo na obra diurna de Gaston Bachelard, analisando o potencial metodológico implícito na sua epistemologia e filosofia das ciências, resumida na noção de “construção do objeto científico”, para o qual pretendemos estender a discussão para a “construção do objeto turístico”.

A obra diurna de Bachelard encontra-se no contexto da revolução científica promovida no início do século XX pela Teoria da Relatividade, desenvolvida a partir de 1905 por Albert Einstein. Todo seu trabalho acadêmico objetivou dar a esta ciência uma filosofia compatível com a sua novidade.

E é partindo deste objetivo que Bachelard formula suas principais
proposições para a filosofia das ciências: a historicidade da epistemologia e a relatividade do objeto.

Segundo Bachelard, a nova ciência relativista rompe com as ciências anteriormente formuladas em termos epistemológicos e metodológicos. Nas suas palavras:

Várias vezes, nos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos cada vez mais evidente, no decorrer dos nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso. (BACHELARD, 1972, p.27)

O “novo espírito científico”, portanto, encontra-se em descontinuidade, em ruptura, com o senso comum, o que significa uma distinção, nesta nova ciência, entre o universo em que se localizam as opiniões, os preconceitos, enfim, o senso comum e o universo das ciências, algo não transparente nas ciências anteriores, baseadas em boa medida nos limites do
empirismo, em que a ciência representava uma continuidade.

A superação do empirismo nas ciências se dá através do Racionalismo.

A postura epistemológica do novo cientista não se satisfaz com aproximações empiristas sobre os objetos, ao contrário, proclama-se no “novo espírito científico” o primado da realização sobre a realidade.

As experiências já não são feitas no vazio teórico, mas são, ao invés disso, a realização teórica por excelência. O cientista aproxima-se do objeto, na nova ciência, não mais por métodos baseados nos sentidos, na experiência comum, mas aproxima-se através da teoria.

Isso significa que o método científico já não é direto, imediato, mas indireto, mediado pela razão. O vetor epistemológico, segundo Bachelard, segue o percurso do “racional para o real”, o que é contrário à epistemologia até então predominante na história das ciências. Uma das
distinções mais importantes, pois, entre as ciências anteriores ao século XX é a superação do empirismo pelo racionalismo.

Um outro ponto importante para a compreensão do que chamamos “metodologia
bachelardiana”, é a sua noção de “obstáculos epistemológicos”, tratado, sobretudo, na obra A formação do espírito científico, de 1938. Nesta obra Bachelard propõe uma psicanálise do conhecimento, em que o seu progresso é analisado através de suas condições internas, psicológicas. Na sua avaliação histórica da ciência, o filósofo francês se vale do que chama de
“via psicológica normal do pensamento científico”, o que nos remete ao universo psicanalítico.

Quanto aos “obstáculos epistemológicos”, afirma Bachelard, é através deles que se analisam as condições psicológicas do progresso científico. Nas suas palavras:

É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas da inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos (...) o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização. (BACHELARD, 1996, p.17).

A noção de obstáculo epistemológico é de fundamental importância para o
desenvolvimento do conhecimento no âmbito das pesquisas. É na superação destes obstáculos que reside o sucesso de uma pesquisa científica.

Porém, condição essencial para a superação dos obstáculos é a consciência por parte dos cientistas de que eles existem e que, se não neutralizados, podem comprometer o processo da pesquisa, desde seus fundamentos até os seus resultados. Dentre tantos exemplos citados por Bachelard na obra A formação do Espírito Científico, irei deter-me em dois apenas, que penso serem constantes nas pesquisas: o obstáculo da realidade e o obstáculo do senso comum, da opinião. Para analisar estes obstáculos, utilizarei também o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), que construiu na sua obra A profissão de sociólogo (1999), uma metodologia para a Sociologia baseada nos princípios da “construção do objeto científico”, de Bachelard.

O primeiro obstáculo, a realidade, está inserido na crítica já citada anteriormente a respeito do empirismo. O pesquisador, ao olhar seu objeto de estudo, especialmente quando este faz parte do universo social, como é o caso da educação, pode incorrer no perigo de se deixar levar pelo que se lhe é visível, dando a este um estatuto de verdade que ele não tem a
priori. Para Bachelard:

diante do mistério do real, a alma não pode, por decreto, tornar-se ingênua. É impossível anular, de um só golpe, todos os conhecimentos habituais. Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber. (BACHELARD, 1996, p.18).

O segundo obstáculo epistemológico, o senso comum, semelhante ao primeiro,
relaciona-se especificamente com a dificuldade com a qual se depara o cientista social em separar o seu conhecimento comum, suas opiniões, seus preconceitos, as avaliações relacionadas à sua posição social e econômica etc., do conhecimento teórico, científico, que deve estar comprometido com a busca da verdade, baseada em leis gerais, em conceitos e não em preconceitos. O que pensamos é que a utilização consciente de um método de pesquisa, como a “construção do objeto científico”, leva o cientista a chegar mais próximo possível da verdade do seu objeto, sem com isso entender o esgotamento do seu estudo, dada a característica dialética conhecimento.

Ambos os obstáculos nos ajudam a entrar no tema específico do objeto científico na perspectiva bachelardiana, o que será feito na próxima parte.

A novidade do objeto científico

A primeira característica do objeto científico, segundo Bachelard, é que ele não é dado pela natureza, em continuidade com esta, mas, ao contrário, é construído pelo cientista. Isso significa que, no exercício da ciência, o cientista deve romper com o senso comum e, conseqüentemente, com os objetos advindos desse tipo de experiência.

Enquanto o empirismo proclama métodos de observação e medição diretos, em consonância com a imediaticidade das experiências comuns, o racionalismo proclama a necessidade de uma aproximação mediata, indireta, através de uma teoria de base. Ao primeiro olhar que satisfaz o empirista, o racionalista propõe um segundo olhar, vigilante, que retifica a experiência primeira.

Uma conseqüência desse novo objeto científico que se coloca fora e além das antigas fronteiras do conhecimento empírico, é que a realidade com que essa nova ciência trabalha, já não é única e absoluta, mas relativa e representada. O espaço, diz Bachelard, é agora o “espaço pensado”, os “fenômenos são representados”. Rompe-se, assim, na atividade
científica, com a vida comum, onde não se tem o compromisso de uma análise sistemática das noções. “O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive”, eis a proposta bachelardiana.

Desse modo o apego ao realismo deve ser superado pela vigilância epistemológica do cientista, que é a constante luta para fugir do empirismo, do realismo e do senso comum na atividade científica.

A condenação do realismo vem no mesmo sentido da condenação das noções absolutas e claras, típicas do pensamento cartesiano. É por isso que, no final de O Novo Espírito Científico (1996a), Bachelard propõe uma “epistemologia não cartesiana”. Nas suas palavras:

Ao falar de uma epistemologia não cartesiana, não é na condenação das teses da física cartesiana, ou mesmo na condenação do mecanismo cujo espírito se mantinha cartesiano, que pretendemos insistir, mas sim numa condenação da doutrina das naturezas simples e absolutas. Com o novo espírito científico, é todo um problema da intuição que se acha revolvido [...] Não apenas Descartes crê na existência de elementos absolutos no mundo objectivo, mas ele pensa ainda que esses elementos absolutos são conhecidos na sua totalidade e directamente. (BACHELARD, 1996a, p.101).

A preocupação constante do autor é, pois, com a necessária vigilância que se deve ter na escolha e nos métodos de investigação do objeto. É muito comum a sedução pelo primeiro olhar, pela primeira aproximação, como se essas fossem já a verdade, como se o caminho do cientista parasse nesse primeiro passo, considerado por Bachelard como obstáculo ao conhecimento.

Uma outra característica do objeto científico da nova ciência do século XX é a sua necessária relação com outros objetos e conceitos.

Esta nova ciência não trabalha mais com objetos em si, mas com as relações que o determinam, como o caso do conceito de massa citado por Bachelard (1996), com o qual ele faz um exercício interessante de demonstração da evolução do conceito. Entre a física newtoniana, para a qual a noção de massa era absoluta,independente da velocidade e do tempo, e a física relativista de Einstein, para a qual a massa é função da velocidade de deslocamento do objeto, existe uma ruptura, uma complexificação que é uma retificação do saber, típica do novo espírito científico.

O racionalismo deve, neste caso, multiplicar os métodos de explicação, sob perigo de incorrer em um novo erro científico.

Os métodos, assim, estão em relação direta com os objetos a serem estudados, mas, ao mesmo tempo, determinam esses objetos. Ambos, objetos e métodos, são funções da experiência, o que elimina a noção clássica de métodos puros e perenes, válidos para toda e qualquer situação de pesquisa, no passado ou no presente.

Ao contrário, para o autor: todo o pensamento científico deve mudar diante duma experiência nova; um discurso sobre o método científico será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma constituição definitiva do espírito científico.(BACHELARD, 1996, p.97).

Proclama-se, assim, a ruptura com a rotina metodológica, perniciosa para o desenvolvimento científico. Os conceitos científicos têm sentido nas condições de experimentação em que foram construídos e, portanto, perdem sua eficácia ao serem mecanicamente transportados para outros conceitos. Segundo Bachelard (1988, P. 70):

Essa mobilidade dos métodos sadios deve ser inscrita na própria base de toda psicologia do espírito científico, pois o espírito científico é estritamente contemporâneo do método explicitado. Não se deve confiar nada nos hábitos quando se observa. O método está intimamente ligado à sua aplicação.

Mesmo no plano de pensamento puro, a reflexão sobre o método deve
continuar ativa. Como diz muito bem Dupreel, ‘uma verdade demonstrada
permanece constantemente sustentada não em sua própria evidência, mas na
sua demonstração’.

A proposta bachelardiana de método científico não pode, pois, ser confundida com os famosos manuais de metodologia, que consagram, através do apelo à coerência, uma abordagem estanque em que aos cientistas resta escolher um caminho metodológico e segui-lo o mais fielmente possível.

Em Bachelard, ao contrário, os métodos devem evoluir e se multiplicar conforme o objeto o exija, levando-se em conta a necessária vigilância e rigor, que devem ser atitudes constantes na atividade científica.

O que este autor propõe é não confundir rigor científico com rigidez metodológica, que pode estancar a criatividade e imobilizar o
pensamento.


A “construção do objeto sociológico” em Pierre Bourdieu No seu livro A Profissão de Sociólogo, produzido na década de 70 e traduzido em 1999
para o português, o sociólogo francês Pierre Bourdieu expõe uma síntese da sua metodologia, trazendo como referência a “construção do objeto científico” de Gaston Bachelard. Podemos dizer que o objetivo de Bourdieu é aplicar à pesquisa sociológica os princípios bachelardianos já expostos anteriormente.

Bourdieu parte do mesmo pressuposto epistemológico que Bachelard, ou seja, afirma que o conhecimento segue o vetor do racional para o real, o que significa a crença na primado do teórico sobre o empírico.

O sociólogo francês inscreve-se no mesmo campo teórico bachelardiano da ruptura do conhecimento científico com o conhecimento comum que, no caso da Sociologia, implica a ruptura com a sociologia espontânea, típica do senso comum. No trecho a seguir Bourdieu ressalta a importância da reflexão filosófica que o pesquisador deve ter sobre sua prática científica, seguindo os princípios de Bachelard:

Semelhante tarefa, propriamente epistemológica, consiste em descobrir no
decorrer da própria atividade científica, incessantemente confrontada com o
erro, as condições nas quais é possível tirar o verdadeiro do falso, passando de um conhecimento menos verdadeiro a um conhecimento mais verdadeiro, ou melhor, como afirma Bachelard, ‘próximo, isto é, retificado’. (BOURDIEU, 1999, p.17).


Percebe-se no trecho acima o compromisso de Bourdieu com a construção de uma ciência sociológica, detentora de uma racionalidade específica, diversa da idéia comum que as pessoas têm da sociedade, por viverem nela.

As palavras de Durkheim, em seu livro As Regras do Método Sociológico, “a vida social deve ser explicada, não pela concepção que dela têm a
seu respeito os que participam nela, mas por causas profundas que escapam á consciência.”
(BOURDIEU, 1999, p.26), está no cerne desta concepção.

Em Bourdieu encontramos um autor comprometido com o espírito científico de busca incessante da verdade, embora esta não seja dada como óbvia, mas que precisa ser encontrada, mesmo que contra a realidade do senso comum. Esta realidade, em si, não representa a verdade, mas, ao contrário, está impregnada da ideologia dominante na sociedade, materializada em boa parte da vida comum, das relações humanas e sociais, nos gostos, gestos, hábitos, convenções etc.

Passemos a analisar algumas características do objeto sociológico, segundo a perspectiva de Bourdieu. A primeira característica é a diferença entre o objeto sociológico e os objetos das ciências físicas e naturais. Enquanto nestas há uma clara fronteira entre o pesquisador e o objeto, nas ciências sociais, dentre elas encontra-se o Turismo, estes se confundem, por serem ambos partes da sociedade e por nela ocuparem determinadas posições.

Para que este fato não influencie as análises e os resultados das pesquisas sociais, Bourdieu propõe, como Bachelard, a “vigilância epistemológica”, como explica no trecho seguinte:

A vigilância epistemológica impõe-se, particularmente, no caso das ciências do homem nas quais a separação entre a opinião comum e o discurso
científico é mais imprecisa do que alhures
[...] a familiaridade do universo social constitui, para o sociólogo, o obstáculo epistemológico por excelência[...] O sociólogo nunca conseguirá acabar com a sociologia espontânea e deve se impor uma polêmica incessante contra as evidências ofuscantes que proporcionam, sem grandes esforços, a ilusão do saber imediato e de sua riqueza insuperável. (BOURDIEU, 1999, p.23).

Para além da vigilância epistemológica, o autor atenta para o fato de que o objeto sociológico não existe apenas e tão somente no universo dos “problemas sociais” que, como tais, são resultados das relações sociais, políticas e econômicas da sociedade, mas não são em si objetos de pesquisa. Para a construção científica do objeto de pesquisa não basta a
possibilidade de se aplicar técnicas científicas aos objetos da “sociologia espontânea”. Para Bourdieu, é preciso inserir o objeto de pesquisa em uma problemática teórica, isto é:

Por mais parcial e parcelar que seja um objeto de pesquisa, ele só pode ser
definido e construído em função de uma problemática teórica que permita
submeter a uma interrogação sistemática os aspectos da realidade colocados
em relação entre si pela questão que lhes é formulada (BOURDIEU, 1999,
p.48).

A construção do objeto em Bourdieu, assim como em Bachelard, põe em movimento a capacidade do cientista em captar sua essência relacional, a complexidade envolvida na compreensão científica do objeto de pesquisa.

A relacionalidade inerente ao objeto demanda do cientista uma flexibilidade na utilização dos métodos de pesquisa, o que faz Bourdieu conclamar os sociólogos, e eu diria também os pesquisadores do Turismo, a lutarem contra a rigidez metodológica, que paralisa o cientista e o impede de avançar no conhecimento do objeto, pois impede a complexificação das análises por outros métodos de investigação.

O objeto sociológico necessariamente é um objeto relacional e multiplamente determinado, o que exige métodos de aproximação no plural e não no singular, sempre com a ressalva da vigilância e reflexão do cientista na aplicação dos métodos ao caso específico estudado. Quanto menos consciente for a teoria implícita em determinada prática – teoria do conhecimento do objeto e teoria do objeto – maiores serão as possibilidades de que ela seja mal controlada, portanto, mal ajustada ao
objeto e suas especificidades. (BOURDIEU, 1999, p.53).


A necessária relacionalidade do objeto sociológico impõe ao pesquisador uma constante batalha contra as certezas do senso comum. Qualquer estudo no Turismo que não levar em conta os nexos relacionais está fadado a uma mera descrição superficial da realidade seguida de uma teoria mecanicamente superposta, cujo único objetivo é garantir cientificidade onde ela não existe. “Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo.” (BOURDIEU, 2001, p.31).

O pensamento relacional, chamado por Bourdieu de “pensamento analógico”, é o principal instrumento do habitus científico das ciências sociais, que tem no método comparativo o procedimento principal na construção do objeto sociológico. Vale lembrar, como o autor afirma no seguinte trecho, que analogia e semelhança não podem ser confundidas:

Partindo da confusão entre a simples semelhança e a analogia, relação entre relações que deve ser conquistada contra as aparências e construída por um verdadeiro trabalho de abstração e por meio da comparação conscientemente operada, os modelos miméticos, que se limitam a apreender as semelhanças exteriores, opõem-se aos modelos analógicos que visam reaprender os princípios ocultos das realidades que interpretam. (BOURDIEU, 1999, p.69).

Durante toda sua carreira, Bourdieu se caracterizou pela produção de pesquisas de campo em que os conceitos teóricos eram colocados à prova, num movimento dialético entre teoria e prática.

Um exemplo interessante é o livro A miséria do mundo (1997), em que Bourdieu e uma equipe de pesquisadores desvendam diversos aspectos da marginalidade na França, realizando para isso entrevistas com pessoas nas mais diversas situações de exclusão: aposentados, jovens de periferia, estrangeiros etc. Tais entrevistas, usadas como método de investigação, ou seja, “teorias em ato”, forneceram materiais de reflexão teórica que, em conjunto, garantiram aos pesquisadores, e garantem aos leitores, uma compreensão mais fundamentada das situações pesquisadas.

No texto Reprodução Cultural e Reprodução Social, inserido no livro A economia das trocas simbólicas (1992), Bourdieu utiliza como método de investigação as estatísticas culturais para provar que os bens culturais “pertencem” realmente àqueles que possuem capital cultural suficiente para apreciá-los. O autor flagra, nessa pesquisa, a atuação do sistema de ensino:

todas as relações observadas entre a freqüência ao museu e outras variáveis como a classe ou a fração de classe, a idade, a renda ou o domicílio, reduzem-se quase que totalmente à relação entre o nível de instrução e a freqüência. A existência de uma relação tão forte e tão exclusiva entre o nível de instrução e a prática cultural não deve dissimular o fato de que, dados os pressupostos implícitos que a orientam, a ação do sistema escolar somente alcança sua máxima eficácia na medida em que se exerce sobre indivíduos previamente dotados pela educação familiar de certa familiaridade com o mundo da arte.(BOURDIEU, 1992, p. 303-304).

É nesse tipo de pesquisa que o objeto é construído e emerge contra a realidade do senso comum, da ideologia dominante. A “construção do objeto sociológico”, por tudo que foi dito, é um poderoso método para alavancar as pesquisas na área do Turismo, inserindo-as cada vez mais no âmbito científico e contribuindo para o aperfeiçoamento dos conhecimentos na
área do Turismo.

A construção do objeto turístico: subsídios para uma discussão inicial
Os desafios colocados por Gaston Bachelard e Pierre Bourdieu serão aqui aplicados à reflexão sobre as possibilidades de construção do Turismo como objeto científico.

Seguindo as trilhas metodológicas dos autores analisados, vamos defender que, no caso do estudo do Turismo, temos que tratá-lo como uma “construção”, ou seja, partimos do pressuposto de que o estudo do Turismo, assim como todos os objetos das ciências humanas, não são dados prontos pela realidade, mas que temos, como pesquisadores, que construir a
nossa perspectiva.

Construir a perspectiva significa dizer que a realidade não se sustenta cientificamente por si mesma, mas que depende de uma interpretação, a qual será formulada pela compósita entre teoria e prática social do pesquisador.

Para que possamos desenvolver uma reflexão pautada sobre um objeto concreto do Turismo, iremos trabalhar com a argumentação desenvolvida por Moesch (2002), em livro pioneiro na discussão sobre a epistemologia do Turismo no Brasil, em que trata de estudar especificamente o “mundo” criado por Walt Disney nos EUA, em especial o “Animal Kingdom”.

A autora não adota como referencial a abordagem bachelardiana, porém percebemos uma aproximação possível entre a sua exposição e o que aqui defendemos como alternativa ou construção de uma epistemologia para o Turismo.

Moesch (2002) dá como exemplo de construção o objeto turístico “Animal Kingdom”, construído por Walt Disney. A partir deste exemplo a autora refaz um caminho que poderíamos aproximar da metodologia da “construção do objeto turístico”. Ela percorre um minucioso caminho histórico-descritivo deste empreendimento, coletando elementos da biografia de Walt Disney, a maneira como foi empreendendo e construindo seu mundo fantástico. Num capítulo a parte a autora nos fala especificamente sobre “Animal Kingdom”,
em que também nos coloca frente à impressionante história da construção deste parque temático.

Neste esforço descritivo a autora coloca para o leitor o seu universo empírico, ou seja, começa a construir seu objeto a partir da “realidade”, daquilo que podemos ver ou estudar.

É apenas num segundo momento, após detalhada viagem pela história e descrição, que a autora começa a percorrer o caminho que leva à “construção do objeto turístico”, ou seja, à sua formulação teórica refeita a partir do seu objeto empiricamente descrito. Nas suas palavras:

Para fugirmos do limite da descrição, por mais documentada que tenha sido, não podemos ficar apenas nela, devemos nos guiar por um esquema teórico – que serve de eixo para a coleta desses dados – para mais bem assegurarmos a pertinência e a interpretação das informações reunidas. (MOESCH, P. 97)

Percebe-se, nesta passagem, que a autora aproxima-se do método aqui exposto, especialmente pela maneira de tratar o objeto turístico não apenas como uma realidade empírica, mas pela necessidade de construí-lo teoricamente.

Mais uma aproximação possível é que a autora admite que a teoria já é um ato epistemológico em relação à prática, pois é a teoria que nos guia para a investigação. Significa dizer que a autora investigou empiricamente o “Animal Kingdom” com o olhar voltado para a sua teoria de base, no caso a “Dialética Histórico-Estrutural”.

Apesar de não nos situarmos nesta perspectiva, pensamos que existe uma aproximação de princípios epistemológicos neste caso abordado, o que nos levou a poder exemplificar o que entendemos como a construção do objeto turístico utilizando através da análise feita por Moesch do “Animal Kingdom”.

Podemos sintetizar esquematicamente como proceder, com o exemplo acima, para construí-lo teoricamente, utilizando como teoria de base a “construção do objeto científico”, proposta por Gaston Bachelard:

· Análise empírica do objeto: esta primeira fase nos responde onde se encontra nosso objeto no mundo da realidade e, encontrando-o, nos mostra a sua relevância para o desenvolvimento do conhecimento na área da teorologia.

Importante salientar que esta é uma primeira fase a ser superadas pela pesquisa, como apontou Moesch (2002, p.97), na citação acima;

· Análise histórica do objeto: esta fase nos remete às determinações históricas, o que é de fundamental importância para conhecermos nosso objeto. A sua história nos possibilita conhecer seu caráter apresentado no presente, dentre outras contribuições;

· Análise filosófica do objeto: a partir desta fase já passamos a construir propriamente nosso objeto de estudo. Tendo como base a sua empiricidade e sua história, poderemos construir uma visão filosófica do objeto, o que significa observar e retirar dele o seu caráter ideológico, político, social, através de uma análise crítica da realidade do objeto
e do seu papel na sociedade.

Significa refletir sobre como o turismo se coloca frente à sociedade, especialmente nesta sociedade dita ”pós-moderna”, “globalizada”, em que o tempo livre tem sido alvo de inúmeras reflexões balizadas por uma nova tendência do mundo do trabalho.

O que significa um empreendimento como “Animal Kingdom” para refletirmos sobre o mundo atual? O que ele, como objeto, nos desafia a pensar? Por que construir um mundo paralelo? Para divertir ou alienar? Para recuperar um “mundo perdido” africano, destruído pela dita “civilização ocidental”, ou, justamente o contrário, para expor a África como entretenimento e nos fazer esquecer a responsabilidade sobre a realidade de miséria deste continente?;

· Análise econômica do objeto: no turismo é de fundamental importância analisar os impactos econômicos, tanto para a população receptora como para o sistema turístico em geral. Estes impactos têm ligação direta com outras determinações, como a análise do bem-estar ou, o contrário, o mal-estar produzido pelo empreendimento turístico.

A análise econômica também nos coloca frente a categorias firmadas ainda no século XIX por Marx, especialmente aquelas de classe social, capital, contradição, ideologia, enfim, os conceitos que nos possibilitam fazer uma análise econômica da sociedade, no sentido de entendê-la em seu funcionamento produtivo.

Também, como aponta Moesch, a análise econômica nos leva a estudar o turista como consumidor, ou seja, uma análise microeconômica. Especialmente o consumo simbólico, como nos aponta a mesma autora;

· Análise cultural do objeto: dado que o turismo tem uma relação direta com a produção humana, ou seja, como os homens produzem as condições materiais e subjetivas para atrair pessoas de outras localidades para usufruir turisticamente o seu atrativo, podemos dizer que a relação turismo-cultura é uma relação necessária e interdependente.

No caso do “Animal Kingdom”, Moesch destaca este elemento já em sua introdução da teoria que construiu para entendê-lo. “A realidade é entendida como uma criação dos sujeitos que, com seus pensamentos, sentimentos e ações transformam o mundo natural em cultura, dando-lhe sentido”. (MOESCH, P. 97).

Na verdade, um empreendimento como o citado pode ser analisado pela vinculação “natureza-cultura”, entendidos como termos dialéticos. Walt Disney transformou a natureza em empreendimento cultural, mas o fez de modo que o visitante pudesse ter a impressão de estar em meio à natureza africana intocada;

· Análise tecnológica do objeto: especificamente em relação a “Animal Kingdom”, e claro em relação a tantos outros objetos turísticos, é relevante a análise do complexo tecnológico produzido para que, no final, o visitante se sentisse em meio à natureza tal e qual. Não é o uso pelo uso da tecnologia que nos interessa, mas os impactos que o
seu uso causa no visitante. Segundo Moesch (p. 99):

A tecnologia utilizada no entretenimento, aplicada ao imaginário, gera ao
sujeito consumidor e reprodutor toda a diversão possível de usufruir, ou,
pressupostamente, possível de ser criada pelo homem. Todos se sentem repletos de criação, mesmo que o consumo seja o máximo interativo, esta vivência já permite substituir o processo de criação.

· Interpretação do objeto: a partir do estágio que nos encontramos, temos a
possibilidade de passarmos a interpretar nosso objeto turístico, o que significa dizer que podemos, após analisadas suas determinações materiais e subjetivas, olhar para o objeto de forma globalizada e integrada, tendo sobre ele um domínio teórico-prático que nos leva a compreendê-lo segundo a nossa teoria de base.

É neste momento que construímos categorias interpretativas e, assim, formulamos nossa explicação científica do objeto turístico analisado. No caso estudado, a autora inferiu de “Animal Kingdom” uma análise que contempla as categorias do chamado “pós-modernismo”, como ressignificação da categoria lugar, espaço, fluidez, neotribalismo, enfim, categorias que a fez interpretar este empreendimento como característico da fase de globalização por que passa o mundo contemporâneo e, além disso, categorias que lembram as análises “pós-modernas”, especificamente pela questão da fluidez e dispersão características de um mundo sem certezas e em que as categorias até então rígidas, universais e atemporais já são colocadas em suspeição.

As questões levantadas acima são suficientes para que possamos defender que a metodologia da “construção do objeto científico”, embora não tenha sido a adotada pela autora analisada (MOESCH, 2002), pode ser um importante instrumento nas pesquisas no campo do turismo.

Em resumo, podemos dizer que, através deste método, podemos partir da dialética da realidade/real: a realidade como ponto de partida (o empírico como primeiro passo), a análise das determinações do objeto (histórica, filosófica, econômica, tecnológica, cultural etc.), que significa construir teoricamente o objeto no sentido de superar o empirismo e, finalmente, o real, produto da complexificação da realidade pela teoria, o que nos possibilita voltar para o nosso objeto e interpretá-lo, produzindo sobre ele conhecimento científico e objetivo. Mostramos este movimento na “construção do objeto turístico” “Animal Kingdom”.

Considerações Finais

O presente artigo procurou levantar as possibilidades do uso da metodologia proposta por Gaston Bachelard, a “construção do objeto científico” e por Pierre Bourdieu, a “construção do objeto sociológico”, para o desenvolvimento de uma epistemologia do Turismo.

O entendimento que procuramos defender é que os objetos turísticos podem ser “construídos” e, assim, melhor trabalhados teórica e praticamente.

Para isso partimos da constatação de que não podemos parar a reflexão sobre os objetos do Turismo no universo da realidade, ou seja, através do que constatamos pelos sentidos: que vemos, ouvimos, sentimos.

A construção do objeto turístico necessita que ultrapassemos o nível empírico e nos encaminhemos para uma construção racionalista, no sentido bachelardiano, ou seja, da formulação teórica do objeto e sua relação dialética com a prática.

Acreditamos que fazendo isso contribuímos para o desenvolvimento de uma
epistemologia do Turismo, expandindo o campo de possibilidades teóricas para as pesquisas nesta área, como na análise que fizemos do objeto turístico “Animal Kingdom”, formulada por Moesch (2002).

Esta análise poderia ser multiplicada para outros objetos e pesquisas na área do Turismo.

Acima da estrita “coerência” proclamada pelos manuais de metodologia de pesquisa, devemos atentar para a rigorosidade no uso das metodologias necessárias para a “construção do objeto”, para a realização de uma pesquisa eficiente e de qualidade. A liberdade intelectual, da qual Bachelard e Bourdieu são adeptos, cobra este preço caro, mas gratificante, dos pesquisadores.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. Conhecimento comum e conhecimento científico. In: Tempo Brasileiro São Paulo, nº28, p. 47-56, jan-mar 1972.
______. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
______. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
______. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
______. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996a.
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992. (Coleção Estudos: Ciências Sociais).
______. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
______. A miséria do mundo. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 1997.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean Claude; PASSERON, Jean Claude. A profissão de Sociólogo: preliminares epistemológicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
JAPIASSÚ, Hilton. Para ler Bachelard. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. (Série Para ler).
MOESCH, Marutschka. A produção do saber turístico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002.

O Museu de Arte Sacra do Pará é composto pela igreja de Santo Alexandre e pelo Palácio Episcopal. A igreja teve o início da sua construção por volta de 1698 e inauguração em março de 1719. Seu acervo é composto por objetos litúrgicos datados dos séculos XVIII e XIX, somando cerca de 320 peças expostas no primeiro pavimento do Palácio Episcopal e no Coro da Igreja. Além disso, o Museu também funciona como espaço cênico-musical para espetáculos teatrais e recitais, além de fazer parte do Complexo Feliz Lusitânia.

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