Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Enfrentar as INCERTEZAS

“Os deuses criam-nos muitas surpresas: o espera- do não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho.”
Eurípedes

Ainda não incorporamos a mensagem de Eurípedes, que é a de estarmos prontos para o inesperado. O fim do século XX foi propício, entretanto, para compreender a incerteza irremediável da história humana.

Os séculos precedentes sempre acreditaram em um futuro, fosse ele repetitivo ou progressivo. O século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, sua imprevisibilidade. Esta tomada de consciência deve ser acompanhada por outra, retroativa e correlativa: a de que a história humana foi e continua a ser uma aventura desconhecida.

Grande conquista da inteligência seria poder enfim se libertar da ilusão de prever o destino humano. O futuro permanece aberto e imprevisível.

Com certeza, existem determinantes econômicas, sociológicas e outras ao longo da história, mas estas encontram-se em relação instável e incerta com acidentes e imprevistos numerosos, que fazem bifurcar ou desviar seu curso. As civilizações tradicionais viviam na certeza de um tempo cíclico cujo funcionamento devia ser assegurado por sacrifícios às vezes humanos.

A civilização moderna viveu com a certeza do progresso histórico.

A tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a destruição do mito do progresso. O progresso é certamente possível, mas é incerto. A isso acrescentam-se todas as incertezas devido à velocidade e à aceleração dos processos complexos e aleatórios de nossa era planetária, que nem a mente humana, nem um supercomputador, nem um demônio de Laplace poderiam abarcar.

1. A INCERTEZA HISTÓRICA

Quem teria pensado, na primavera de 1914, que um atentado cometido em Sarajevo desencadearia a guerra mundial que duraria quatro anos e que faria milhões de vítimas?

Quem teria pensado, em 1916, que o exército russo se desagregaria e que um pequeno partido marxista, marginal, provocaria, contrariamente à própria doutrina, a revolução comunista em outubro de 1917?

Quem teria pensado, em 1918, que o tratado de paz assinado trazia em si os germes da Segunda Guerra Mundial, que arrebentaria em 1939?

Quem teria pensado, na prosperidade de 1927, que uma catástrofe econômica, iniciada em 1929, em Wall Street, se abateria sobre o planeta?

Quem teria pensado, em 1930, que Hitler chegaria legalmente ao poder em 1933?

Quem teria pensado, em 1940-41, afora alguns irrealistas, que o formidável domínio nazista sobre a Europa, após os impressionantes progressos da Wehrmacht na URSS até as portas de Leningrado e Moscou, seria acompanhado em 1942 pela reviravolta total da situação?

Quem teria pensado, em 1943, durante a plena aliança entre soviéticos e ocidentais, que a guerra fria se manifestaria três anos mais tarde entre estes mesmos aliados?

Quem teria pensado, em 1980, afora alguns iluminados, que o Império Soviético implodiria em 1989?

Quem teria imaginado, em 1989, a Guerra do Golfo e a guerra que esfacelaria a Iugoslávia?

Quem, em janeiro de 1999, teria sonhado com os ataques aéreos sobre a Sérvia, em março de 1999, e no momento em que estas linhas são escritas, pode medir suas conseqüências?

Ninguém pôde responder a estas questões no momento da escrita destas linhas, que, talvez, ficarão ainda sem resposta durante o século XXI.

Como dizia Patocka:“O devenir é doravante problematizado e o será para sempre”. O futuro chama-se incerteza.

2. A HISTÓRIA CRIADORA E DESTRUIDORA

O surgimento do novo não pode ser previsto, senão não seria novo. O surgimento de uma criação não pode ser conhecido por antecipação, senão não haveria criação.

A história avança, não de modo frontal como um rio, mas por desvios que decorrem de inovações ou de criações internas, de acontecimentos ou acidentes externos. A transformação interna começa a partir de criações inicialmente locais e quase microscópicas, efetua-se em meio inicialmente restrito a alguns indivíduos e surge como desvios em relaçãoà normalidade.

Se o desvio não for esmagado, pode, em condições favoráveis, proporcionadas geralmente por crises, paralisar a regulação que o freava ou reprimia, para, em seguida, proliferar de modo epidêmico, desenvolver-se, propagar-se e tornar-se tendência cada vez mais poderosa, produzindo a nova normalidade. Foi assim com todas as invenções técnicas, a atrelagem, a bússola, a imprensa, a máquina a vapor, o cinema, até com o computador; foi assim com o capitalismo nas cidades-estado do Renascimento; assim foi com todas as grandes religiões universais, nascidas de uma preleção singular, com Sidharta, Moisés, Jesus, Maomé, Lutero; assim foi com todas as grandes ideologias universais, nascidas em algumas mentes marginais.

Os despotismos e totalitarismos sabem que os indivíduos portadores de diferenças constituem um desvio potencial; eles os eliminam e aniquilam os microfocos de desvios. Entretanto, os despotismos acabam por abrandar-se, e o desvio surge, às vezes na própria cúpula do Estado, freqüentemente de maneira inesperada, na mente de novo soberano ou de novo secretário-geral.

Toda evolução é fruto do desvio bem-sucedido cujo desenvolvimento transforma o sistema onde nasceu: desorganiza o sistema, reorganizando-o.

As grandes transformações são morfogêneses, criadoras de formas novas que podem constituir verdadeiras metamorfoses. De qualquer maneira, não há evolução que não seja desorganizadora/reorganizadora em seu processo de transformação ou de metamorfose. Não existem apenas inovações e criações.

Existem também destruições. Estas podem trazer novos desenvolvimentos: assim, os avanços da técnica, da indústria e do capitalismo levaram à destruição de civilizações tradicionais. As destruições maciças e brutais chegam do exterior, pela conquista e pelo extermínio que aniquilaram impérios e cidades da Antiguidade.

No século XVI, a conquista espanhola constituiu uma catástrofe total para os impérios e civilizações dos incas e dos astecas. O século XX assistiu
à queda do Império Otomano, do Império Austro-húngaro e à implosão do Império Soviético. Além disso, muitas conquistas foram perdidas para sempre após cataclismos históricos. Tantos saberes, tantas obras de pensamento, tantas obras-primas literárias, inscritas nos livros, foram destruídas com estes livros.

Há fraca integração da experiência humana adquirida e forte desperdício desta experiência, dissipada em grande parte a cada geração. De fato, há um enorme desperdício das aquisições na história. Enfim, quantas boas idéias não foram integradas, mas, ao contrário, rejeitadas pelas normas, tabus, interdições.

A história também nos mostra criações surpreendentes, como em Atenas, onde surgiram, concomitantemente, cinco séculos antes de nossa era, a democracia e a filosofia, e terríveis destruições, não somente de sociedades, mas de civilizações. A história não constitui, portanto, uma evolução linear. Conhece turbulências, bifurcações, desvios, fases imóveis, êxtases, períodos de latência seguidos de virulências, como o cristianismo, que ficou incubado dois séculos antes de submergir o Impé- rio Romano; processos epidêmicos extremamente rápidos, como a difusão do Islamismo.

Trata-se da sobreposição de devenires que se entrechocam com imprevistos, incertezas, que comportam evoluções, involuções, progressões, regressões, rupturas. E quando se constituiu a história planetária, esta comportou, como vimos neste século, duas guerras mundiais e erupções totalitárias.

A história é um complexo de ordem, desordem e organização. Obedece ao mesmo tempo a determinismos e aos acasos em que surgem incessantemente o “barulho e o furor” . Ela tem sempre duas faces opostas: civilização e barbárie, criação e destruição, gênese e morte...

3. UM MUNDO INCERTO

A aventura incerta da humanidade não faz mais do que dar prosseguimento, em sua esfera, à aventura incerta do cosmo, nascida de um acidente impensável para nós, e que continua no devenir de criações e destruições.

Aprendemos, no final do século XX que, à visão do universo obediente a uma ordem impecável, é preciso substituir a visão na qual este universo é o jogo e o risco da dialógica (relação ao mesmo tempo antagônica, concorrente e complementar) entre a ordem, a desordem e a organização.

A Terra, provavelmente, em sua origem — um monte de detritos cósmicos oriundos de uma explosão solar—, ela própria se auto-organizou na dialógica entre ordem/desordem/organização e sofreu não apenas erupções e terremotos, mas também o choque violento de aerolitos, dos quais um talvez tenha provocado o desprendimento da Lua.(10)

4. ENFRENTAR AS INCERTEZAS

Nova consciência começa a surgir: o homem, confrontado de todos os lados às incertezas, é levado em nova aventura. É preciso aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época de mudanças em que os valores são ambivalentes, em que tudo é ligado. É por isso que a educação do futuro deve se voltar para as incertezas ligadas ao conhecimento (cf. Capítulo II), pois existe:

•Um princípio de incerteza cérebro-mental, que decorre do processo de tradução/reconstrução próprio a todo conhecimento.

•Um princípio de incerteza lógica: como dizia Pascal muito claramente,“Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a não contradição é sinal de verdade.

•Um princípio da incerteza racional, já que a racionalidade, se não mantém autocrítica vigilante, cai na racionalização.

•Um princípio da incerteza psicológica: existe a impossibilidade de ser totalmente consciente do que se passa na maquinaria de nossa mente, que conserva sempre algo de fundamentalmente inconsciente. Existe, portanto, a dificuldade do auto-exame crítico, para o qual nossa sinceridade não é garantia de certeza, e existem limites para qualquer autoconhecimento.

10. Ver Capítulo III “ Ensinar a condição humana”, 1.3 “A condição terrestre”.

Tantos problemas dramaticamente unidos nos fazem pensar que o mundo não só está em crise; encontra-se em violento estado no qual se enfrentam as forças de morte e as forças de vida, que se pode chamar de agonia.

Ainda que solidários, os humanos permanecem inimigos uns dos outros, e o desencadeamento de ódios de raça, religião, ideologia conduz sempre a guerras, massacres, torturas, ódios, desprezo. Os processos são destruidores de um mundo antigo, aqui multimilenar, ali, multissecular.

A humanidade não consegue gerar a Humanidade. Não sabemos ainda se se trata só da agonia de um velho mundo—prenúncio do novo nascimento — ou da agonia mortal. Nova consciência começa a surgir: a humanidade é conduzida para uma aventura desconhecida.

4.1 A incerteza do real

Dessa forma, a realidade nãoé facilmente legível. As idéias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade nãoé outra senão nossa idéia da realidade.

Por isso, importa não ser realista no sentido trivial (adaptar- se ao imediato), nem irrealista no sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real.

Isto nos mostra queé preciso saber interpretar a realidade antes de reconhecer onde está o realismo. Uma vez mais chegamos a incertezas sobre a realidade, que impregnam de incerteza os realismos e revelam às vezes que aparentes irrealismos eram realistas.

4.2 A incerteza do conhecimento O conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Entretanto, é nas certezas doutrinárias, dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores ilusões; ao contrário, a consciência do caráter incerto do ato cognitivo constitui a oportunidade de chegar ao conhecimento pertinente, o que pede exames, verificações e convergência dos indícios; assim, nas palavras cruzadas, atinge-se a precisão para cada palavra na adequação ao mesmo tempo de sua definição e sua congruência com as outras palavras que contêm letras comuns; em seguida, a concordância geral que se estabelece entre todas as palavras constitui a verificação de conjunto que confirma a legitimidade das diferentes palavras inscritas.

Mas a vida, diferentemente das palavras cruzadas, compreende espaços sem definição, espaços com falsas definições e, sobretudo, a ausência de um quadro geral fechado; é somente aí que se pode isolar um quadro e tratar os elementos classificáveis, como no quadro de Mendeleiev, que se pode al- cançar certezas. Uma vez mais repetimos: o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas.

4.3 As incertezas e a ecologia da ação

Temos,às vezes, a impressão de que a ação simplifica, pois em uma alternativa decide-se, escolhe-se. Entretanto, a ação é decisão, escolha, mas é também uma aposta. E na noção de aposta há a consciência do risco e da incerteza.

Aqui intervém a noção de ecologia da ação. Tão logo um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja, esta começa a escapar de suas intenções. Esta ação entra em um universo de interações e é finalmente o meio ambiente que se apossa dela, em sentido que pode contrariar a intenção inicial.

Freqüentemente a ação volta como um bumerangue sobre nossa cabeça. Isto nos obriga a seguir a ação, a tentar corrigi-la — se ainda houver tempo — e, às vezes, a torpedeá-la, como fazem os responsáveis da Nasa, quando explodem um foguete que se desvia de sua trajetória. A ecologia da ação é, em suma, levar em consideração a complexidade que ela supõe, ou seja, o aleatório, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência de derivas e transformações. (11)

Uma das maiores conquistas do século XX foi o estabelecimento de teoremas que limitam o conhecimento, tanto no raciocínio (teorema de Gödel, teorema de Chaitin), como na ação. Neste campo, assinalemos o teorema de Arrow, que erige a impossibilidade de associar o interesse coletivo a interesses individuais, assim como de definir a felicidade coletiva com base em uma coleção de felicidades individuais. De forma mais ampla, é impossível apresentar um algoritmo de otimização para os problemas humanos: a busca da otimização ultrapassa qualquer capacidade de busca disponível e torna finalmente não - ótima, quiçá péssima, a procura do optimum.

Somos conduzidos a nova incerteza entre a busca do bem maior e a do mal menor. Por outro lado, a teoria dos jogos de von Neumann indica-nos que, além do duelo entre dois atores racionais, não se pode decidir com segurança a melhor estratégia. Entretanto, os jogos da vida raramente comportam dois atores e, ainda mais rara- mente, atores racionais.

Enfim, a grande incerteza a enfrentar decorre do que chamamos de ecologia da ação, que compreende três princípios.

11. Cf. E. Morin. Introductionà la pensée complexe. ESF editeur, Paris. 1990.

4.3.1 O circuito risco/precaução O princípio da incerteza provém da dupla necessidade do risco e da precaução. Para toda ação empreendida em meio incerto, existe contradição entre o princípio do risco e o princípio da precaução, sendo um e outro necessários; trata-se de poder uni-los a despeito de sua oposição, segundo as palavras de Péricles, in Tucídides, Guerra do Peloponeso: “Todos sabemos ao mesmo tempo demonstrar extrema audácia e nada empreender sem madura reflexão. Nos outros, a intrepidez é efeito da ignorância, enquanto a reflexão engendra a indecisão.”

4.3.2 O circuito fins/meios

Temos o princípio da incerteza do fim e dos meios. Como os meios e os fins inter-retroagem uns sobre os outros, é quase inevitável que meios sórdidos a serviço de fins nobres pervertam estes e terminem por substituí-los.

Meios de dominação utiliza-dos para um fim libertador podem não apenas contaminar esse fim, mas também se auto-extinguir.

Assim, a Tcheca, após ter pervertido o projeto socialista, se auto-extinguiu, convertendo-se, sob sucessivos nomes como Guépéou, NKVD, KGB, em poderosa polícia suprema destinada a se autoperpetuar.

Entretanto, a astúcia, a mentira, a força a serviço de uma justa causa podem salvá-la sem contaminá-la, com a condição de ter utilizado meios excepcionais e provisórios. Ao contrário, é possível que ações perversas conduzam a resultados felizes, justamente pelas reações que provocam.

Então, não é absolutamente certo que a pureza dos meios conduza aos fins desejados, nem que sua impureza seja necessariamente nefasta.

4.3.3 O circuito ação/contexto

Toda ação escapaà vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retroações do meio em que intervém. Este é o princípio próprio à ecologia da ação. A ação não corre apenas o risco de fracasso, mas de desvio ou de perversão de seu sentido inicial, e pode até mesmo voltar-se contra seus iniciadores. Assim, o estopim da revolução de outubro de 1917 suscitou não a ditadura do proletariado, mas a ditadura sobre o proletariado.

Em sentido mais amplo, as duas vias para o socialismo, a reformista social-democrata e a revolucionária leninista, terminaram ambas em algo bem diferente de suas finalidades. A instalação do rei Juan Carlos na Espanha, conforme a intenção do general Franco de consolidar sua ordem despótica, contribuiu significativamente, ao contrário, para levar a Espanha à democracia.

A ação também pode ter três tipos de conseqüências insuspeitas, como as recenseou Hirschman:

•o efeito perverso (o efeito nefasto inesperadoé mais importante do que o efeito benéfico esperado);

•a inanição da inovação (quanto mais se muda, mais tudo permanece igual);

•a colocação das conquistas em perigo (quis-se melhorar a sociedade, mas só se conseguiu suprimir liberdade ou segurança).

Os efeitos perversos, vãos, nocivos da revolução de outubro de 1917 manifestaram-se na experiência soviética.

5. A IMPREVISIBILIDADE EM LONGO PRAZO

Pode-se, com certeza, considerar ou calcular os efeitos em curto prazo de uma ação, mas seus efeitos em longo prazo são imprevisíveis. Assim, as conseqüências em cadeia de 1789 foram todas inesperadas. O Terror, depois Termidor, em seguida o Império, depois o restabelecimento dos Bourbons e, ainda mais amplamente, as conseqüências européias e mundiais da Revolução Francesa foram imprevisíveis até outubro de 1917, inclusive como foram em seguida imprevisíveis as conseqüências de outubro de 1917, desde a formação até a queda do império totalitário.

Assim, nenhuma ação está segura de ocorrer no sentido de sua intenção.

A ecologia da ação convida-nos, porém, não à inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos e à estratégia que permite modificar, até mesmo anular, a ação empreendida.

5.1 O desafio e a estratégia

Há efetivamente dois meios para enfrentar a incerteza da ação. O primeiro é totalmente consciente da aposta contida na decisão, o segundo recorre à estratégia.

Uma vez efetuada a escolha refletida de uma decisão, a plena consciência da incerteza torna-se plena consciência de uma aposta. Pascal reconhecia que sua fé provinha de um desafio. A noção de aposta deve ser generalizada quanto a qualquer fé, a fé em um mundo melhor, a fé na fraternidade ou na justiça, assim como em toda decisão ética.

A estratégia deve prevalecer sobre o programa. O programa estabelece uma seqüência de ações que devem ser executadas sem variação em um ambiente estável, mas, se houver modificação das condições externas, bloqueia-se o programa. A estratégia, ao contrário, elabora um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação, as probabilidades, as improbabilidades. O cenário pode e deve ser modificado de acordo com as informações recolhidas, os acasos, contratempos ou boas oportunidades encontradas ao longo do caminho.

Pode-mos, no âmago de nossas estratégias, utilizar curtas seqüências programadas, mas, para tudo que se efetua em ambiente instá- vel e incerto, impõe-se a estratégia. Deve, em um momento, privilegiar a prudência, em outro, a audácia e, se possível, as duas ao mesmo tempo.

A estratégia pode e deve muitas vezes estabelecer compromissos. Até onde?

Não há resposta geral para esta questão, mas, ainda aqui, há um risco, seja o da intransigência que conduzà derrota, seja o da transigência que conduzà abdicação. É na estratégia que se apresenta sempre de maneira singular, em função do contexto e em virtude do próprio desenvolvimento, o problema da dialógica entre fins e meios.

Enfim, é preciso considerar as dificuldades de uma estratégia a serviço de uma finalidade complexa, como aquela indicada pela divisa“ liberdade, igualdade, fraternidade” . Estes três termos complementares são ao mesmo tempo antagonistas; a liberdade tende a destruir a igualdade; esta, se for imposta, tende a destruir a liberdade; enfim, a fraternidade não pode ser nem decretada, nem imposta, mas incitada.

Conforme as condições históricas, uma estratégia deverá favorecer seja a liberdade, seja a igualdade, seja a fraternidade, porém, sem jamais se opor verdadeiramente aos dois outros termos.

Assim, a respostaàs incertezas da ação é constituída pela escolha refletida de uma decisão, a consciência da aposta, a elaboração de uma estratégia que leve em conta as complexidades inerentes às próprias finalidades, que possa se modificar durante a ação em função dos imprevistos, informações, mudanças de contexto e que possa considerar o eventual torpedeamento da ação, que teria tomado uma direção nociva.

Por isso, pode-se e deve-se lutar contra as incertezas da ação; pode-se mesmo superá-las em curto ou em médio prazo, mas ninguém pretende tê-las eliminado em longo prazo. A estratégia, assim como o conhecimento, continua sendo a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas.

O desejo de liquidar a Incerteza pode então nos parecer uma enfermidade própria a nossas mentes, e todo o direcionamento para a grande Certeza poderia ser somente uma gravidez psicológica.

O pensamento deve, então, armar-se e aguerrir-se para enfrentar a incerteza. Tudo que comporta oportunidade comporta risco, e o pensamento deve reconhecer as oportunidades de riscos como os riscos das oportunidades.

O abandono do progresso garantido pelas“ leis da História” não é o abandono do progresso, mas o reconhecimento de seu caráter incerto e frágil. A renúncia ao melhor dos mundos não é, de maneira alguma, a renúncia a um mundo melhor.

Na história, temos visto com freqüência, infelizmente, que o possível se torna impossível e podemos pressentir que as mais ricas possibilidades humanas permanecem ainda impossíveis de se realizar. Mas vimos também que o inesperado torna-se possível e se realiza; vimos com freqüência que o improvável se realiza mais do que o provável; saibamos, então, esperar o inesperado e trabalhar pelo improvável.

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