Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O caos da mundialização autocrática - Marcos Antonio Ribeiro Tura

A visão sustentada por muitos, mas especialmente por Francis Fukuyama, alto funcionário do Departamento de Estado norte-americano, segundo a qual, com o fim dos regimes do Leste europeu e, particularmente, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a democracia teria vencido todas as formas de opressão autocrática, e que teria se instalado definitiva e universalmente, é profundamente enganosa, para não dizer desonesta.

Com efeito, a declaração de adesão ao princípio democrático (e seus derivados) é, atualmente, preponderante nos ordenamentos constitucionais do sistema mundial e dos diversos sistemas nacionais. Todavia, com muito mais efeito ainda, a existência de ordenamentos democráticos nunca significou, como hoje não significa, a existência de sociedades democráticas, sejam sociedades de países ou de indivíduos, algo já percebido desde a Grécia antiga. A dissonância entre fatos e normas é especialmente perceptível, sobretudo em sociedades submetidas a decênios de controles autocráticos expressos em práticas nos planos interno, e externo, velada, ou abertamente, incompatíveis com formas e conteúdos jurídicos participativos, como o foram e o são, em maior ou menor grau, todos os sistemas nacionais integrados ao caos do mundo capitalista.

Essa história, entretanto, é bem mais antiga do que possa parecer e está vinculada à expansão exponencial e brutal do capitalismo pelo mundo que pode ser descrita, genericamente, como mais de quinhentos anos de uma luta declarada pelas pessoas ricas das sociedades ricas aliadas às pessoas ricas das sociedades pobres contra as pessoas pobres do resto do mundo; algo bem distante de um ideário realmente democrático. Efetivamente, a história de todos esses mais de quinhentos anos de capitalismo é a história de conquistas democráticas derivadas das lutas populares que, porém, foram sendo desvirtuadas pelas elites.

A ação das elites européias em fins do século passado é exemplar desses procedimentos. O avanço das massas populares na época colocou em questão, em diversas ocasiões, o monopólio do poder pelas elites. Naturalmente, o pavor com a mera possibilidade de formação de um poder popular autônomo e efetivo generalizou-se.

A incapacidade dos governos europeus em lidar com essas novas circunstâncias motivava uma contínua mudança nas forças políticas que os comandavam. As atitudes deveriam, pois, ser tomadas antes que fosse tarde demais. A saída imaginada pelas elites da época foi apelar para a criação de mecanismos de controle que, embora sugerissem a plenitude da democracia, não permitiriam sua expressão mais profunda.

Assim, o poder político começou a ser efetivamente exercido pelas burocracias, pelos funcionários permanentes do Estado, enquanto os parlamentos se convertiam na mais perfeita materialização do seu nome: um lugar, quando muito, da fala, apenas.

Isso não bastou, contudo, para o controle da expansão da democracia. Os descontentamentos gerados pelo liberalismo econômico clássico colocavam em risco a própria existência do Estado capitalista e, assim, embora minassem os clássicos acordos pelos quais os governos ficavam à margem do campo econômico, uma série de programas voltados a reformas sociais contribuíram para conter o avanço das massas populares nos limites da democracia bem comportada.

O tempo se incumbiu de demonstrar para as elites que "a democracia parlamentar, a despeito de seus temores" revelara-se "perfeitamente compatível com a estabilidade político econômica dos regimes capitalistas". Com os relatos do passado e as sensações do presente, pode-se concluir que as teses defendidas pelas elites da época acerca de uma conversão da democracia em burocracia não eram manifestações descabidas de um efeito perverso a atacar as mudanças sociais. Foram incontinências verbais de membros das elites que, no calor e no pavor das transformações prenunciadas pelo avanço popular, deram conta dos seus próximos passos para reverter uma situação indesejável e inaceitável.

O presente não deixa nada a dever ao passado. De fato, foi neste século, especialmente a partir do final dos anos quarenta, que essa luta das elites contra os povos do mundo se acelerou, acarretando profundas implicações para os ideais democráticos. É certo que tais ideais foram afirmados. Apenas e tão-somente, contudo, para permanecerem no plano dos ideais porque, concomitantemente à sua afirmação, as práticas autocráticas remodelaram-se e firmaram-se em bases mais sólidas, conseguindo criar excelentes mecanismos para controlar a democracia dentro dos limites do aceitável pelas elites. A universalização democrática, assim, foi seguida e ultrapassada pelas pernas mais velozes da mundialização autocrática a atingir todos os países, independentemente da denominação que buscam para legitimar seus sistemas de violência, rapina e mentira. Na cultura das elites, o conceito de democracia resume-se sempre como um ideal abstrato.

A democracia para elas será funcional apenas se conseguir submeter os interesses de todos às necessidades dos controladores dos investimentos.

Fukuyama sabe disso melhor do que qualquer outra pessoa. Mas em seu ofício, o malabarismo verbal comprometido com as elites substitui o sentimento mais profundo do cotidiano vivido pelos povos do mundo.

Sentimento de que a democracia está, pois, tão disseminada quanto superficial. Fukuyama se esquece, deliberadamente, de mencionar essa circunstância.

Para infelicidade sua e de seus adeptos, no entanto, outros muitos já se deram conta de que a denominada Nova Ordem Mundial é muito similar à Velha. As solenes proclamações da propaganda oficial não são capazes de transformar e conformar as realidades às suas palavras. Como, também, não são capazes de enganar, durante muito tempo, a todos. Atualmente, as críticas à velharia da Nova Ordem Mundial são mais consistentes e são, também, mais convincentes do que antes. Os povos situados em países e regiões submetidos aos rígidos controles das elites transnacionais e aos seus amargos experimentos de maximização dos lucros e minimização dos riscos vão, paulatina mas cotidianamente, descobrindo que seus interesses não são levados em consideração nos cálculos dos expertos do poder autocrático mundializado.

A democratização das organizações que se propunham supranacionais, como a Organização das Nações Unidas, que, desde o final da Segunda Grande Guerra, quando nasceu, vinha assistindo a uma significativa elevação da participação dos países periféricos e a uma modesta, porém importante, redução do peso dos países centrais do sistema mundial na formação de suas decisões, tem-se desnaturado e cedido espaço, nas decisões efetivas sobre os acontecimentos mundiais mais candentes, para a "santíssima trindade do capital em geral, em ente ubíquo, como um deus", formada pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que, proclamadas como sendo organizações multilateralmente constituídas para a promoção das relações de amizade e ajuda mútua entre os diversos países têm sido, de fato, um foro privilegiado para a satisfação dos interesses das elites transnacionais protegidas pelos países centrais do sistema mundial sob a orientação ainda muito destacada, em razão de sua preponderância militar e ideológica, dos Estados Unidos da América. Esse é o mundo em que os países centrais do oligopólio mundial regulam suas tensões internas de modo a melhor repartirem os mercados do globo.

O sistema mundial do caos capitalista propõe, então, aos povos situados em quase todos os países e regiões que se deixem levar pelos misticismos do livre mercado, que seus governos promovam a abertura de suas fronteiras para os investidores estrangeiros, que removam obstáculos legais para o trânsito dos capitais, reduzam os gastos com as áreas ditas sociais e que transfiram empresas estatais para o controle de particulares. As regras valem para quase todos os países e regiões; quase, já que para alguns não se impõem, seja porque seus governos são ainda muitíssimo fortes para que as elites transnacionais os forcem a acatar as decisões, como o governo dos Estados Unidos da América, seja porque seus povos são tão miseráveis que deixaram de ser viáveis para sustentar a exploração das riquezas, como em parcela considerável dos países da África, da Ásia e da América Latina cujas massas populares, sugadas até o fim, agora experimentam a total degradação com a eclosão concomitante da fome, das doenças e das guerras fratricidas.

Para aqueles países cujos governos tradicionalmente são controlados por interesses de elites sem conexão com aspirações de um desenvolvimento voltado para a satisfação das necessidades das massas populares e em que estas ainda demonstram capacidade para suportar e sustentar a exploração transnacional, com o desvio de recursos das coletividades para poucos, as regras são plenamente válidas e o modelo dualista e verticalizado de organização do sistema mundial é utilizado no plano interno para a organização dos sistemas nacionais, nos campos político, econômico e ideológico. Os países, assim, cujas elites não querem enfrentar os oligopólios locais, regionais e o grande oligopólio mundial e denunciar as políticas dos países centrais são, necessária e forçosamente, levados a aderir aos esquemas e a acatar os ditames do sistema.

O modelo adotado nesses países segue mais ou menos os mesmos critérios, a depender dos princípios de seus ordenamentos constitucionais. Em países que consagram o princípio da repartição de competências e que, portanto, possuem mais de uma esfera de governo dotada de autonomia para obter receitas e realizar despesas, os governos centrais reduzem a autonomia dos governos regionais e locais, concentrando as receitas, independentemente das competências, sem, porém, concentrar as despesas oriundas dessas mesmas competências. Os governos regionais e locais, então, ficam, mesmo que não compartilhem de suas tendências políticas, na dependência dos interesses dos governos centrais e procuram colaborar com suas metas.

No âmbito dos governos centrais de países que afirmam o princípio da distinção de órgãos e funções estatais o órgão com a função executiva avança por sobre as demais, e concentra as atribuições da função legislativa e, até mesmo, da função judiciária ou, simplesmente, as esvazia. Além disso, há uma certa colaboração dos órgãos responsáveis por aquelas funções visto que, controlando as receitas e despesas, o órgão com a função executiva controla, igualmente, a vida dos demais órgãos estatais.
Internamente ao órgão responsável pela função executiva, a concentração do poder político prossegue. Os círculos e agências burocráticos mais diretamente ligados aos acontecimentos econômicos mundiais têm as suas atribuições ampliadas e a eles são submetidos os demais círculos e agências, especialmente aqueles ligados à satisfação das necessidades populares. Os controles parlamentares e judiciais sobre os atos desses mesmos círculos e agências burocráticos são, freqüentemente, afastados e, quando não o são, seus resultados são inoperantes porque se defrontam com fatos consumados para cuja reparação os parlamentares e juízes, nesse sentido intencionados, não possuem força política e os parlamentares e juízes que a possuem, não têm quaisquer intenções de usá-la.

As burocracias, assim, pretensamente infalíveis e indispensáveis, são poupadas de se submeterem ao que julgam desnecessário e desprezível: discutir os seus procedimentos com as massas populares. Para os intelectuais a serviço dos conglomerados transnacionais e das burocracias estatais a razão é assimilada à concentração do poder como forma de evitar o que consideram uma ameaça a liberdade, uma violação da razão, isto é: a participação popular na tomada das decisões. Na verdade, isso se justifica porque a aspiração da intelectualidade técnica em participar do poder, baseada numa suposta perícia profissional, pode ser posta em dúvida pela descoberta de seus erros.

Esse processo de concentração dos meios de representação e afirmação dos interesses sociais e de administração das receitas e despesas estatais pelos círculos e agências burocráticos, dos governos centrais, ligados mais diretamente aos acontecimentos econômicos mundiais, rompendo com o princípio da democratização do campo político que, através da repartição de competências, da distinção entre órgãos e funções estatais, da submissão das burocracias aos controles parlamentares e judiciais e, também, da qualificação das burocracias econômicas como meros instrumentos de realização das finalidades sociais do Estado, representante de todo o povo, é decorrência das necessidades das elites transnacionais e de suas associadas nacionais que não podem, de maneira alguma, se submeter aos dissabores de uma reviravolta nas condições estabelecidas para o retorno de seus investimentos nos negócios dos diversos países e, também, não podem deixar transparecer a desvinculação entre suas finalidades e os interesses das massas populares que a elas sustentam e a sua exploração suportam. As coalizões entre os conglomerados transnacionais e os governos dos diversos países integrados ao caos capitalista mundializado têm, pois, a finalidade de assegurar a permanência da verticalização do sistema.

Há vezes mesmo, e não raras, que essas mesmas burocracias não trabalham apenas no escuro contra a independência e soberania nacionais. Quando podem, atacam-na como um resquício nefasto de um passado remoto e, em vez de promoverem a reformulação dos instrumentos indispensáveis para assegurá-la nos termos da democracia, como devem atuar as forças militares devidamente controladas pelo povo, desmontam-nos, com o auxílio de comandantes militares, muitos dos quais também membros ou familiares de membros das elites associadas às elites transnacionais. Quando a gritaria na tropa se inicia, os cofres são abertos, um pouco; apenas para manter os braços armados no lugar para eles desejado e reservado no e pelo sistema mundial.

Cabendo aos Estados Unidos da América o comando militar da Nova Ordem Mundial, na figura por enquanto incontrastável de supremo policial das relações mundiais, as forças militares dos demais países vêem-se reduzidas às funções típicas de polícias regionais e locais destinadas ao controle da "criminalidade interna", isto é, ao controle das massas populares que extravasarem os limites do aceitável. Quando as técnicas de controle do pensamento falham na diminuição da livre e espontânea experimentação com novas formas sociais, são suplementadas pelas técnicas de violência que as modernas tecnologias providenciam. Os comandantes militares dos países periféricos são chamados a colaborar com um comando unificado informal para a manutenção da estabilidade das relações sempre ameaçadas pelo caos do mundo capitalista remoçado. Muitos aderem e gostam desse caos, pois lhes dá razão de existência.

As economias dos países, então, passam a ser mais facilmente e radicalmente colonizadas, invertendo possíveis tendências ao desenvolvimento independente, ou menos dependente, dos investimentos externos. O fluxo de capitais estrangeiros nas economias nacionais já não mais é rivalizado pelos capitais nacionais, nem mesmo se forem considerados como nacionais os capitais mistos, capitais com grande participação estrangeira, mas não majoritária, em suas composições.

Os capitais, agora, vêm diretamente, sem intermediários. Os empréstimos que eram concedidos aos governos desses países por governos estrangeiros ou por organizações multilaterais, agora são pagos na forma de novos endividamentos. Os governos estrangeiros e organizações multilaterais concedem empréstimos pelos quais são pagos mas que nunca saíram, fisicamente, de seus cofres. Os conglomerados empresariais financeiros, controlando os capitais industriais e comerciais, agora são os que, diretamente, transferem seus recursos para os países periféricos por simples operações interbancárias e, dotados de altíssima mobilidade, saem dos mesmos como entraram; só que agora acrescidos de bárbaros juros financiados pelas receitas estatais.

O número de empresas nacionais reduz-se dramaticamente, restando, para aquelas parcelas das elites que ainda não estejam associadas às elites transnacionais, a associação ou a gestão dos negócios daquelas.

A concentração e desnacionalização da economia é estimulada pelas burocracias formadas, invariavelmente, nas escolas americanas mais conhecidas do neoliberalismo. Os estímulos vão desde os empréstimos de argumentos acerca da superioridade das empresas estrangeiras até outros empréstimos, tão bem vistos mas melhor recebidos que os outros, de instituições financeiras públicas, criadas para o desenvolvimento social, para a compra de empresas estatais lucrativas.

A visão burocrática sobre ser impossível um desenvolvimento das sociedades dos países periféricos que não pela dependência e que não para alimentar os modos de vida das elites nacionais associadas às elites transnacionais é plenamente assimilada, aplicada e praticada sem maiores rubores, dores ou pudores. As empresas que se instalam nos países periféricos não são exportadoras de produtos ou serviços mas voltadas ao mercado interno, exportando apenas os seus vultosos ganhos para os seus acionistas no exterior sem quaisquer controles por parte das burocracias nacionais.

Com a total abertura das economias dos países periféricos, as burocracias nem mesmo possuem capacidades tão grandes para controlar o fluxo de capitais que vão e voltam pelo mundo todos os dias em somas assustadoras, derrubando regiões, países e povos inteiros pelo caminho. O controle está, isto sim, após a alienação do poder político dos países periféricos, nos recursos estatais que são, carinhosamente, concedidos para pagamento com condições tão especiais que podem ser considerados empréstimos a fundo perdido.

Com a crise afetando muitas das empresas existentes, os empregos que ainda sobraram são disputados pelo povo, quase que com a mesma fúria encontrada nas disputas entre os países periféricos pelos investimentos oriundos dos países centrais. Mesmo quando há aumento de salários, o que não tem ocorrido sempre nos países periféricos, a massa de salários pagos cai e a produtividade cresce, sugerindo que, para obter competitividade, as empresas têm reduzido suas despesas pela compressão dos salários e pelo aumento da carga de trabalho.

Se, numa situação dessas, os sindicatos mais fortes perdem suas capacidades de resistência e os trabalhadores a eles sindicalizados e as categorias por eles representadas são desmobilizados, os sindicatos mais fracos perdem quaisquer chances de se tornarem fortes e os trabalhadores a eles sindicalizados ou as categorias por eles representadas simplesmente correm o risco de desaparecerem do mapa da produção concentrada e transnacionalizada com os recursos da automação e da robótica.

Empréstimos em condições especialíssimas, caríssimos contratos para obras e serviços desnecessários, subsídios à produção e à distribuição de bens de consumo e de uso, altos juros e reservas cambiais, redução ou isenção de tributos, para as elites transnacionais e suas associadas nacionais, são invariável e devidamente financiados pelo povo com a elevação dos volumes e dos valores dos tributos e das tarifas e, concomitantemente, pela diminuição do peso dos benefícios e salvaguardas previdenciárias, assistenciais, sanitárias e educacionais, enfim, voltadas às denominadas áreas sociais.

A terrível e insensata concentração dos meios de representação e afirmação dos interesses sociais e de administração das receitas e despesas estatais, pelos círculos e agências burocráticos mais diretamente ligados aos acontecimentos econômicos mundializados, precipita a concentração não menos terrível, mas muito mais avassaladora, dos meios de produção e distribuição das riquezas sociais e de satisfação das necessidades coletivas pelos conglomerados empresariais transnacionais a condensar e coordenar a obtenção e destinação dos capitais financeiros, industriais e comerciais, contrariando o princípio da democratização do campo econômico respaldado pelo favorecimento do setor público para aquelas atividades que sejam necessárias às massas populares, pela supremacia de capitais nacionais na formação dos mercados internos, pela proliferação de empresas, pelo estímulo à competição entre elas, pela manutenção de níveis de competitividade aceitáveis que não conduzam à sua própria eliminação, pela maior participação das empresas e das elites nas transferências patrimoniais para o financiamento do setor público, pela geração de empregos e rendas condizentes com padrões de civilidade. É uma grande catástrofe, para aqueles que vêem.

O problema é que, para aqueles que vêem e, também, para os que ouvem e lêem, as elites transnacionais e suas associadas nacionais oferecem-se como seus olhos e ouvidos. O sistema ideológico autocratizado, assim, se encarregará de controlar o que as pessoas devem saber, ouvir, ver, falar.

Mesmo que haja uma aparente divergência, esta se limita ao consenso estabelecido entre e pelas elites, a divergência ficando nos estreitos limites dos espaços definidos por elas para o debate.

A integração entre os círculos e agências das burocracias econômicas e os conglomerados empresariais transnacionais financeiros, industriais e comerciais, controlando a política e a economia nos países periféricos do caos capitalista mundializado, tem suas deficiências inerentes.

Ela favorece às elites transnacionais e associadas nacionais; porém, para manter-se, precisa da afirmação das burocracias como sendo as representantes dos verdadeiros interesses de todo o povo.

Obviamente, burocracias desvinculadas das dificuldades vivenciadas e das necessidades insatisfeitas das massas populares, certamente não possuem condições intelectuais, que dirá morais, para se apresentarem e se firmarem como legítimas e perfeitas representantes de interesses que, de fato, contestam com suas idéias e ações. E, também obviamente, empresas exportadoras das riquezas nacionais e importadoras de desemprego e desigualdade, dificilmente podem ser apresentadas como promotoras de justiça social e de dignidade humana.

O povo precisa, então, ser suficientemente doutrinado para crer que as dificuldades enfrentadas, os sofrimentos suportados, são inevitáveis para se obter o desenvolvimento das diversas sociedades nacionais e que nada poderiam fazer os seus representantes nos governos para evitar os efeitos de um devastador processo que atinge a todos os países e regiões do mundo capitalista, indistintamente.

Mas, também, as massas populares precisam ser doutrinadas para crerem, ardorosamente, que suas burocracias estão trabalhando para minorar o que era inevitável e que, com isso, os investimentos estrangeiros estão condicionados às suas necessidades a serem satisfeitas no futuro quando, após crescerem, forem repartidos os ganhos. Por enquanto, os sofrimentos e privações devem ser alongados e suportados com o espírito enrijecido pelo pensamento no bem comum; mais tarde, a felicidade compensará todas as tristezas que ficaram para trás. Doutrinação no espírito do neoliberalismo burocrático e do pragmatismo transnacional da melhor espécie.

As elites, muitas vezes, não querem nem mesmo convencer as massas populares com seus argumentos mas apenas semear a confusão. As massas populares confusas se ocupam de outros assuntos e, paulatinamente, na medida em que se reiteram, as mentiras tornam-se verdades. Para as elites parece óbvio que as massas populares devam ser mimadas e manipuladas, assustadas e mantidas na ignorância, de modo que as burocracias estatais possam atuar sem impedimentos. O problema a ser resolvido nas sociedades que, através de seus ordenamentos constitucionais, se afirmam democráticas, mas que submetem os seus povos aos interesses das elites, está em afastar as massas populares das áreas em que os conglomerados empresariais devem mandar. As massas populares devem ser reduzidas, desse modo, à apatia e obediência e devem ser dirigidas da arena dos debates da política autocratizada. Ultrapassados os limites da observação e rumando as massas populares para a participação efetiva nos debates e decisões sobre os seus destinos, as elites não vêem isso como democracia mas como crise da democracia. O controle do pensamento é, por isso, muito mais importante em sociedades aparentemente mais livres, mais democráticas, do que em sociedades militarizadas, despóticas. As idéias libertárias dos democratas radicais são demasiadamente perigosas para as elites. A tarefa pela doutrinação é assumida, então, pelos conhecedores do assunto, por profissionais da magia verbal e mestres das ilusões de ótica. Esses profissionais, arregimentados e dispostos pelas corporações da notícia e do entretenimento, desse modo, se encarregam da estipulação e da disseminação, junto às massas populares, de valores salutares para a aceitação das idéias e ações das burocracias e para a recepção dos capitais transnacionais. Na verdade, essas mesmas corporações de notícia e entretenimento são permeadas pelos capitais dos conglomerados empresariais transnacionais e dependentes das burocracias para sobreviverem e ampliarem suas fatias no mercado das idéias e, posteriormente, das matérias. Como são orientadas para o lucro, elas sequer poderiam continuar a existir sem expandir seus negócios e, pois, se não lhes fossem ofertados polpudos investimentos pelos conglomerados transnacionais e destinadas generosas verbas de empresas e governos para a promoção publicitária. Além disso, as autorizações para o funcionamento de seus serviços, quando necessárias, são facilitadas e a fiscalização sobre os mesmos afrouxadas, quando possível, pelas relações diretas com as burocracias econômicas ou pela mediação dos conglomerados transnacionais entre as corporações e as burocracias. A liberdade de expressão, por isso, para as corporações só vale conforme os seus interesses. Porque efetivamente não são livres mas dependentes e imbricadas com os poderes das burocracias estatais e dos conglomerados transnacionais... Pois, se a concentração dos meios de produção e distribuição das riquezas sociais e de satisfação das necessidades coletivas pelos conglomerados empresariais transnacionais é acompanhada e precipitada pela concentração dos meios de representação e afirmação dos interesses sociais e de administração das receitas e despesas estatais pelas burocracias econômicas mundializadas, e se as corporações da notícia e do entretenimento assumem a tarefa de facilitar a aceitação dos acontecimentos, omitindo-os, distorcendo-os ou limitando, simplesmente, as possibilidades de compreendê-los, nada mais lógico do que empresas e governos favorecerem a concentração dos meios de informação e comunicação dos valores sociais e de difusão das crenças junto às massas populares e às parcelas das elites não-associadas às elites transnacionais naquelas corporações.

As corporações, assim, se ocupam do controle da dissidência entre a massas populares e mesmo entre as elites. Escarnecem parlamentares e juízes discordantes e fazem deles os exemplos do atraso, valorizam as burocracias econômicas e abominam as demais, recriam as velhas canções sobre um mundo livre e cooperativo nos moldes do capital transnacional e denunciam o arcaísmo das empresas independentes que resistem; fazem, enfim, das burocracias econômicas e dos conglomerados transnacionais os protagonistas num espetáculo de maravilhosas e inimagináveis transformações da técnica e da ciência que, finalmente, os povos dos países periféricos acessam.
Feitos, no entanto, todos os arranjos institucionais e comerciais e assentadas as corporações da notícia e do entretenimento em posições mais confortáveis na economia desnacionalizada, surge um aparente grau de autonomia e diferenciação frente aos demais atores dos sistemas autocráticos nacionais e começam, assim, a exercer com mais eficiência ainda suas habilidades mágicas para controlar as próprias burocracias que, antes, as controlavam e, logo, os círculos e agências são reformulados para melhor atenderem aos seus interesses. As corporações estão intimamente ligadas às burocracias estatais e aos conglomerados transnacionais e assim refletem as divisões das elites.

Quando, portanto, as burocracias falham na proteção dos interesses das elites, os ideólogos se apressam em criticar os burocratas e exigir mudanças conquanto tenham profundas imbricações com as empresas transnacionais e as burocracias econômicas, as audiências e tiragens forçam as corporações, muitas vezes, a se distanciarem deles e a criticarem suas posições, evidentemente sem muita ênfase ou insistência.

Pois, é claro, das audiências e tiragens derivam as justificativas para aqueles investimentos e para aqueles anúncios, das empresas e dos governos, indispensáveis para o comércio das idéias e matérias.

Sendo assim, o que significa o sacrifício de alguns frente à manutenção dos demais membros das elites e, principalmente, daqueles por trás dos negócios das corporações de notícias e entretenimento, de seus amigos, aliados e sócios?

Enfim, se a concentração dos meios de representação e afirmação dos interesses sociais e de administração das receitas e despesas estatais, pelos círculos e agências das burocracias econômicas, precipita a concentração dos meios de produção e distribuição das riquezas sociais e de satisfação das necessidades coletivas pelos conglomerados empresariais transnacionais, atingindo o cerne do princípio democrático pela conformação e orientação da política e da economia dos países periféricos para longe de seus povos e para perto das exigências do caos capitalista mundializado, ambos os processos precipitam, acompanham, condicionam e favorecem a concentração e a desnacionalização dos meios de informação e comunicação dos valores sociais e de difusão das crenças junto às massas populares e fazem com que as profundas marcas do princípio da democratização do campo ideológico, voltado à multiplicação das fontes de informação e dos veículos de disseminação de idéias e valores, à estimulação da solidariedade social e à proteção e projeção da dignidade humana, sejam arrancadas pela restrição do conhecimento, pela padronização do pensamento e pela orquestração de condutas das massas populares para atenderem às exigências, satisfazerem aos interesses, e promoverem os valores das elites transnacionais e de suas associadas nacionais.

O sistema econômico baseado no capital monopolista requer um sistema político que o auxilie em sua expansão. Evidentemente, então, o sistema ideológico será formado de modo a evitar a tomada de consciência e, pois, a interferência das massas populares nessa situação. Garantir a lealdade das massas populares e, ao mesmo tempo, excluí-las da efetiva decisão é a tarefa de todo o sistema.

A dominação das relações políticas pelas burocracias econômicas, a exploração das relações econômicas pelos conglomerados empresariais transnacionais, a manipulação das relações ideológicas pelas corporações da notícia e do entretenimento, enfim, as expressões da verticalização das relações entre indivíduos e grupos, países e regiões, não são traços distintivos de um tempo e de um mundo de efetiva aplicação do princípio democrático. E se essa é a Nova Ordem Mundial efusivamente prometida e calorosamente aclamada pelos arautos do capitalismo mundializado, talvez seja recomendável pedir a devolução das passagens e saltar deste trem chamado processo histórico, antes que ele chegue à estação final e todos vejam o belíssimo exemplar reificado em que se converteu o último humano.
 
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Programa Porrolho Mundialização e Cultura e um video feito pelos alunos Lucas Bólico, Priscilla, Mauricio Mota, Alcir Junior e Jonathan Cesar da UFMT 3° Semestre de Comunicacao Social.


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