Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

domingo, 3 de outubro de 2010

Epistemologia, diálogos e saberes: Estratégias para práticas interparadigmáticas em saúde mental

Eduardo Mourão Vasconcelos: Psicólogo, cientista político, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, e militante da luta antimanicomial.

1) Introdução: a luta por políticas públicas universais, acessíveis e eficazes, os princípios de intersetorialidade e integralidade, e suas relações com a interdisciplinaridade

1.1) A responsabilidade social por problemas complexos e multidimensionais e a questão da interdisciplinaridade A tendência crescente para a especialização e fragmentação das diversas áreas de conhecimento, das competências profissionais e das técnicas de intervenção acabam tendo efeitos perversos em políticas sociais, como por exemplo:

- um funcionamento dos serviços em função da competência fragmentada dos profissionais, sem abertura para novas abordagens que buscam assumir toda a complexidade dos problemas em foco;

- a seleção, a desresponsabilização e a negligência em relação a usuários, temas e questões que não se encaixam nas competências especializadas de cada um dos profissionais e serviços.

Assim, programas em políticas públicas voltados para situações complexas e multifacetadas exigem a responsabilização dos vários programas e equipes pela globalidade das necessidades dos cidadãos, implicando práticas interdisciplinares, intersetoriais e voltadas para a integralidade.

1.2) A questão da intersetorialidade Uma tendência histórica das políticas públicas no ocidente e no Brasil tem sido a fragmentação administrativa, institucional e financeira, a descontinuidade, a superposição e até mesmo a competição entre esforços e iniciativas semelhantes por parte de diferentes agências governamentais. Chamamos de intersetorialidade à visão mais ampla dos interesses comuns e de ação integrada e compartilhada no planejamento e na ação de diferentes instâncias de política pública. Isso pode acontecer em diferentes níveis. No plano macro, implica em um desenvolvimento econômico e social que articule as diversas agências governamentais e da sociedade civil em um planejamento global e estratégico coerente e de ações integradas e colaborativas em rede, com referência no território, tendo o controle social como espaços privilegiados de sua implementação, monitoramento e avaliação. No plano regional e local, significa uma articulação “por baixo”, conhecer o conjunto de políticas e programas já existentes, para gerar linhas de cooperação, intercâmbio de conhecimento e experiências, e sugerir mecanismos integrados de financiamento, propor iniciativas e ações conjuntas e compartilhadas, principalmente entre diferentes agências e instâncias institucionais. No plano local e micro, temos a proposta de apoio matricial, que já vem sendo desenvolvida no campo da saúde pública do país, inclui as seguintes características:

- os membros das equipes de uma área específica de política (ex.: saúde, assistência social) dão apoio matricial às equipes de outras áreas do mesmo território, programando uma carga horária para encontros periódicos e formas de contato para demandas inesperadas ou intercorrências;

- as equipes de programas diferentes assumem responsabilidades compartilhadas, como por exemplo, desenvolver ações conjuntas, discutir e compartilhar casos mais complexos de serviços, indivíduos ou famílias, criar estratégias comuns para problemas mais graves (violência, abuso de álcool e outras drogas, outros grupos de risco, etc), em uma lógica diferente e que supera as articulações típicas do encaminhamento;

- o fomento a ações comuns que visem a transformação da cultura difusa na sociedade, tendo em vista a valorização dos princípios e valores da cidadania e das novas políticas sociais;

- o estímulo e desenvolvimento de ações de mobilização de recursos comunitários locais, integrando as diferentes agências governamentais atuantes na área;

- a promoção de iniciativas compartilhadas de capacitação de trabalhadores e lideranças comunitárias.

Além disso, temos também o encaminhamento responsável e monitorado, que exige conhecimento e articulação orgânica entre agências e serviços públicos; contato permanente via telefone ou e-mail; avaliação prévia da possibilidade de encaminhamento; e monitoramento dos resultados e das responsabilidades de cada um no desenvolvimento da intervenção.

1.3) A questão da integralidade Do ponto de vista das bases legais e normativas, o princípio da integralidade do cuidado e da assistência está inserido em legislações importantes no Brasil. Como exemplos, temos a diretriz básica do SUS, com base na Constituição Federal de 1988 (Art. 198): “atenção integral, com prioridades para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, ser refere em seus artigos 1.o e 3.o a uma “atenção integral à criança e ao adolescente”, que lhes propicie “o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e igualdade”.

Podemos ver então que o termo „integral‟ e „integralidade‟ aparecem em diferentes contextos, com variações em seu sentido e operacionalização2:

2 Para maiores detalhes, ver Vasconcelos, 2008.

a) a integralidade como princípio ético-político e ‘imagem objetivo’ utópica (Mattos, 2001);

b) a integralidade como necessidade de interação complexa entre os paradigmas de conhecimento que servem de base aos programas sociais universais, ou seja, como princípio que requer práticas interdisciplinares;

c) a integralidade como princípio de reconhecimento das necessidades específicas dos diferentes grupos geracionais, de gênero e de situação existencial; de diferentes necessidades dentro de cada um destes grupos; e dos variados grupos econômicos, sociais, culturais e étnicos nas comunidades locais;

d) a integralidade como princípio integrador de práticas preventivas e assistenciais de diferentes níveis de complexidade; este é o sentido de integralidade indicado na Constituição Federal, em sua referência ao SUS. Uma atenção que se proponha integral não deve atuar apenas nas demandas explícitas de cuidado e assistência curativa, mas também de prevenção e promoção da saúde;

e) a integralidade como princípio orientador da organização e do processo de trabalho, como um modo mais flexível da organização do trabalho, de gestão democrática e criativa das equipes e serviços, e de estímulo à capacidade de aprender a aprender entre as culturas profissionais implicadas;

f) a integralidade como princípio integrador de políticas, significando ampliar o horizonte de problemas integrados à intervenção e ultrapassar as separações artificiais das políticas setoriais; assim, ela está intimamente associada à intersetorialidade.

2) Conceitos básicos para se pensar as práticas interdisciplinares3

3 O leitor interessado neste tópico pode fazer uso de outro trabalho de minha autoria (Vasconcelos, 2002).

2.1 ) O conceito de paradigma: Foi forjado por Thomas Khun nos anos 70, no já clássico livro “A estrutura das revoluções científicas”. Edgar Morin, nos anos 80 e 90, se apropriou deste conceito, avançando uma crítica ao pensamento fragmentado contemporâneo, e propõe o que chama de paradigma da complexidade. Segundo Morin, os paradigmas consistem em:

a) uma promoção/seleção dos conceitos-mestres da inteligibilidade das concepções científicas e teorias, e que por outro lado excluem ou subordinam os conceitos que lhes são antagônicos. Exemplos são os conceitos de ordem para os deterministas, ou de estrutura para os estruturalistas, e que por sua vez rejeitam respectivamente os conceitos de desordem e de acontecimento;

b) um processo que atribui validade e universidade às operações lógicas-mestras preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio (exclusão-inclusão; disjunção-conjunção; implicação-negação), em detrimento de outras, dando aos discursos e às teorias que controla as características da necessidade e da verdade;

c) um processo de articulação das estruturas conceituais e lógicas com um contexto específico de determinações sociais, econômicas e políticas em um plano subterrâneo, inconsciente e soberano em qualquer teoria ou ideologia, controlando o pensamento consciente.

Desta forma, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles, através inclusive de dimensões profundas, no nível do mito e do sagrado, às vezes até mesmo sob a fachada de ciência ou razão, estabelecendo tabus, proibições e bloqueios.

2.2) O paradigma da complexidade
Morin se contrapõe ao paradigma da simplicidade, que inspira a fragmentação atual das ciências, ao que chamou „paradigma da complexidade’. Por complexidade, entende “o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, as partes entre sí. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade”. Daí, ela apresentar-se „com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza...‟ ” (Morin e Le Moigne, 2000: 38).

2.3) Alguns conceitos implícitos às ‘práticas inter-’
Minha tese fundamental neste ponto da argumentação é a seguinte: os termos interdisciplinaridade e transdisciplinaridade apontam, mas não esgotam os maiores desafios do fenômeno e as várias possibilidades de interação criativa entre campos de conhecimento e prática humana. É mais correto falarmos de práticas multi-, pluri-, inter- e trans- , acompanhadas por esses complementos diversificados, como em: práticas multiprofissionais, pluridisciplinares, interteóricas, interparadigmáticas, etc. Assim, a expressão „práticas interparadigmáticas‟ me parece constituir a melhor expressão para o que queremos dizer, dada a importância fundamental da noção de paradigma nas abordagens voltadas para o tema da complexidade. Em síntese, as ‘práticas inter-’ significam a interação entre as fronteiras de campos de saber e fazer, tanto formais, como informais, como na interação com o campo da arte e com o senso comum e/ou cultura popular.

2.4) Ecletismo e pluralismo:
Em minha concepção, ecletismo significa a conciliação e o uso simultâneo, linear e indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar as diferencas e incompatibilidades na origem histórica, na base conceitual, epistemológica e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um destes pontos de vista.

Para o conceito de pluralismo, retomo as palavras de Coutinho: “é sinônimo de abertura para o diferente, de respeito pela posição alheia, considerando que essa posição, ao nos advertir para os nossos erros e limites, e ao fornecer sugestões, é necessária ao próprio desenvolvimento de nossa posição e, de modo geral, da ciência” (Coutinho, 1994: 14). Em outras palavras, a pactuação de uma vontade coletiva (base da gestão social coletiva, e que impeça as múltiplas associações de interesses de caírem na fragmentação corporativa ou particularista), requer a conservação dessa multiplicidade, diversidade e pluralismos de sujeitos. Coutinho nos lembra de que nas experiências históricas nas quais esse pluralismo foi negado, tivemos claros casos de despotismo. Também nos alerta de que o pluralismo não significa ecletismo ou relativismo moral, ou seja, a conciliação de pontos de vista teóricos e éticos inconciliáveis.

3) Algumas estratégias epistemológicas para práticas inter-paradigmáticas 4

4 Aos que se interessam por esta temática e pelas referências bibliográficas específicas, ver Vasconcelos (2002).

3.1) A dinâmica necessária entre filosofia do espírito e da natureza na leitura de Freud por Hyppolite Jean Hyppolite (1907-1968) (Universidade de Strasbourg, Sorbonne, École Normal Supérieure e College de France), centrou seu trabalho principalmente na releitura e interpretação de Hegel, e a partir delas, estabelecendo uma interação entre a psicanálise e a filosofia. Para ele, várias obras de Freud expressam claramente uma dualidade de modelos teóricos, em que se alternam a ordem da causalidade e da energia psíquica (com sua inspiração em modelos termodinâmicos) e a ordem do sentido e da significação (modelo hermenêutico).

Assim, para Hyppolite, qualquer tentativa de síntese, ou de escolha de uma concepção contra a outra, trairiam a originalidade dessa tensão que Freud não aboliu em seu pensamento e que mantém viva uma das problemáticas mais radicais na história da filosofia, o dualismo entre corpo e espírito, exigindo portanto a permanência de um debate que não poderia ser suspenso a priori.

3.2) Transversalidade e a transdisciplinaridade em Guattari e Deleuze Felix Guattari (1930-1992) foi um militante francês de esquerda, anticolonialista e ecologista, e ativista libertário de várias frentes de contestação e reinvenção das práticas psiquiátricas tradicionais e das diversas formas de opressão socio-institucionais. Sua esquizoanálise enfatisa a heterogeneidade dos componentes dos processos de subjetivação, centrando-se nas suas dimensões diretamente ecológicas, não representacionais e a-significantes.

Assim, para ele, o coeficiente de transversalidade significa então o grau de abertura de um indivíduo ou grupo para levar em conta estas múltiplas dimensões que atravessam e produzem suas vidas e subjetividade, no sentido de viverem o risco de se confrontarem com o novo e a alteridade, assumir o sentido de sua praxis e se instaurarem como indivíduos e grupos sujeitos, e não grupos sujeitados. Daí, a exigência inevitável da transdisciplinaridade, como estratégia de abordagem dos diversos componentes transversais que atravessam qualquer realidade humana e social. Esta se sustenta na acepção de um campo epistemológico e semiótico não representacional comum aos diversos fluxos e processos sociais e materiais, que chama de „inconsciente esquizoanalítico ou maquínico”. O inconsciente maquínico se constitui como produção desejante em aberto, em constante devir, atravessando ordens muito diferentes de caráter social, material e espirituais, articulados com os sistemas de potência e formações de poder que nos cercam, sem objetos parciais tipificados e estruturas universais, como na psicanálise. Guattari propõe uma micropolítica da criação e diferença permanente, de constante crítica ao estabelecido, de novas formas de subjetivação, através de um movimento de „revolução molecular‟. Esta retoma os fluxos desejantes transversais ligados à economia, aos processos políticos e sociais, ambientais, de gênero, de raça/etnia, de identidade erótica, de estados subjetivos, etc, que perpassam os indivíduos, grupos, instituições, os processos gerenciais e técnicos, etc.

3.3) A estratégia de substituição do contexto de argumentação inspirado em Wittgenstein

Ludwig Josef Wittgenstein (1889-1951), filósofo de origem austríaca, viveu a maior parte de sua vida profissional em Cambridge (UK). Na segunda fase de seu pensamento, produziu sobretudo a obra “Investigações Filosóficas”, publicada em 1953, em que propõe o desvendamento da linguagem em seus usos e funções práticas. A linguagem corresponderia a um “jogo de palavras”, como ferramentas utilizadas pelo operário para martelar ou serrar, como estratégias múltiplas para indagar, afirmar, descrever, argumentar, etc, cada uma com regras próprias, não sendo possível uma única estrutura lógica e formal. Este conceito de „jogos de palavras‟ pode ser lido como muito semelhante ao que chamamos aqui como campos teóricos, epistemológicos ou paradigmáticos particulares.

Fritz Wallner, filósofo contemporâneo da Universidade de Viena, sugere uma estratégia interdisciplinar através do dispositivo wittgenteiniano de substituição do contexto de uma argumentação. Quando se tira uma corrente de argumentos de seu contexto, pode-se ter pura irracionalidade, mas também podemos fazer emergir determinadas estruturas da corrente argumentativa que dão nova luz à narrativa, principalmente em relação às suas concepções extra-científicas. Este estranhamento pode ser feito por duas estratégias básicas: pela tentativa de tradução/decodificação ou conversão de um construto para a linguagem comum do homem da rua, ou pela tentativa de explicar um construto pelos métodos de outro. O estranhamento causado por estas duas estratégias fornece meios para promover uma melhor percepção crítica dos limites e absurdos de diversos elementos dos métodos, teorias e conceitos utilizados; uma abertura da „caixa preta‟ para fora de sua linguagem específica, permitindo maior acessibilidade à troca de conhecimento interdisciplinar; bem como a abertura de um diálogo com o senso comum, com a cultura popular e a opinião pública, permitindo discutir melhor os valores ético-políticos que o sustentam, inclusive para aumentar a sua legitimidade social. O discurso gerado pela operação de estranhamento não possui o estatuto de autoridade ou verdade para desqualificar ou fazer o „coroamento simbólico‟ de um construto original, já que inteiramente dependente da perspectiva particular do(s) observador(es) que o constrói(em).

3.4) A crítica da totalidade abstrata por Adorno e Horkheimer e a proposta de dialética negativa de Adorno

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) constituem com Walter Benjamin os principais nomes da primeira geração da Escola de Frankfurt e de sua teoria crítica, trabalhando nas áreas da filosofia, teoria da cultura, estética, música e teoria social. Adorno critica, particularmente em „A Dialética Negativa‟ (1966), as formulações de inspiração neo-hegelianas da possibilidade de que sujeito e objeto do conhecimento possam se fundir, como na definição de conhecimento como autoconhecimento do Espírito absoluto, ou como o proletariado como sujeito e objeto do processo histórico. Neste sentido, a totalização se torna uma utopia necessária, mas qualquer tentativa de realizá-la, conceitual e praticamente, quando se está imerso no reino da necessidade, é necessariamente repressiva e totalitária. Neste sentido, “o todo é falso”. Assim, temos a impossibilidade da dissolução do particular ao universal, onde os termos mantêm um princípio de não identidade (a contradição permanente como princípio criativo): a parte (o indivíduo singular) não pode ser absorvido pelo todo (a totalidade social), sob pena do recalcamento do particular e do totalitarismo. Daí, a recusa de redução do freudismo no marxismo e vice-versa, ou de ambos em uma disciplina totalizante, como no freudo-marxismo de Reich, Fromm e Marcuse. Se nega qualquer possibilidade de „síntese utópica‟ entre civilização e pulsão, de cura, normalidade e totalidade, projetando então uma dialética negativa incurável, como contradição permanente da vida humana.

Assim, a proposta de interdisciplinaridade de Adorno sugere uma relação de contraponto entre os dois campos de conhecimento, na qual cada um funciona como limite negativo do outro, criticando-se e relativizando-se mutuamente, evitando qualquer pretensão totalizante, numa sinfonia dissonante, às vezes cacofônica, e fundada na recusa de qualquer entrelaçamento melódico.

3.5) As bases interparadigmáticas da Psiquiatria Democrática italiana por Franco Basaglia

Franco Basaglia (1924-1980) constituiu a principal liderança do movimento de reforma psiquiátrica na Itália, denominado de Psiquiatria Democrática, e que mais tarde inspirou profundamente movimentos similares em todo o mundo. Militante político e membro da Partido Comunista Italiano, Basaglia fez dialogar sua formação marxista (na qual Gramsci constituía a principal referência) com as principais experiências e teorias inovadoras em psiquiatria de seu tempo e estabeleceu um forte debate interteórico e prático com elas. Exemplos desta interação se deram inicialmente com a fenomenologia existencial, com os movimentos de psicoterapia institucional francesa (Tosquelles e Oury) e com a comunidade terapêutica inglesa (Maxwell Jones). Sua aproximação com a fenomenologia existencial produziu um movimento téorico fundamental. A doença mental não é propriamente negada, como na antipsiquiatria, mas compõe um „duplo‟ que se sobrepõe à relação da cultura e dos profissionais com os usuários de serviços, lhe negando uma história pessoal, subjetividade e identidade própria como ser humano particular.

Para desconstruir este duplo, Basaglia se apropria do dispositivo de époché de Husserl (ou seja, de sua operação de colocar entre parêntesis o fenômeno e suas incrustações humanas e culturais), colocando então entre parêntesis a doença e o modo como foi classificada, para que possamos entrar então em contato com a pessoa do usuário, em sua toda a sua humanidade e singularidade. Temos aqui uma passagem paradigmática operada por Basaglia, certamente inspirada em Sartre, para se acercar da singularidade representada pelos seres humanos particulares e das especifidades do ato clínico, na busca de um ato terapêutico desarmado e aberto para o novo, como constituintes fundamentais do encontro entre seres humanos singulares. Esta ruptura não implica em uma impossibilidade da crítica sócio-histórica na análise dos fenômenos da clínica, mas apenas que esta crítica tem limites e que o campo não pode ser completamente objetivado por qualquer tipo de conhecimento alheio às particularidades do campo.

3.6. O método de articulação circular entre diferentes saberes de Edgar Morin Edgar Morin, importante intelectual francês ainda vivo e ativo, desenvolveu uma ampla sistematização acerca dos paradigmas da simplificação e da complexidade, bem como as premissas e os primeiros movimentos de seu método de articulação circular contínua entre os campos de saber. O método desenvolvido por Morin constitui uma tentativa „enciclopédica‟ de articular os vários tipos de conhecimento das ciências físicas, das ciências biológicas e dos saberes antropossociológicos, mas sem cair na velha “mania totalitária dos grandes sistemas unitários, que encerram o real num grande espartilho de ordem e coerência”. É quase como um “anti-método”, diferente do cartesiano, que visava o conhecimento seguro, partindo apenas do que é claro e distinto.

Morin defende a importância do obscuro e do incerto, buscando reorganizar o nosso sistema mental para “reaprender a aprender”. Sua metodologia busca rearticular os três impérios (física, biologia e antropossociologia), cada um hermético em relação aos outros pela fragmentação disciplinar, produzindo uma „circulação reflexiva‟, através de um anel epistemológico de duas entradas:

Physis - Biologia - Antropossociologia
A ‘Circulação Reflexiva’ de Edgar Morin


Busca-ser um processo de rotação, pelo qual se busca “fisicar nossas noções, depois ressocializá-las, depois refisicalizá-las, depois ressocializá-las, e assim por diante até o infinito” (Morin, 1997: 264).

3.7) O atual processo de transição paradigmática em Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é professor da Universidade de Coimbra e professor visitante de várias universidades importantes da Europa e Estados Unidos, e é um dos principais „gurus‟ dos Forums Sociais Mundiais realizados nesta década. Para ele, a modernidade foi marcada pela degradação das energias emancipatórias em favor das energias de regulação, em uma crescente racionalização da vida coletiva e individual, perdendo o seu potencial de renovação e entrando em crise acentuada nesta virada do milênio.

Assim, vivemos em um processo de “transição paradigmática” de longo prazo em que podemos apenas visualizar os indícios do novo paradigma, que ocorre tanto no nível societal quanto epistemológico.

Não é mais possível conceber estratégias emancipatórias genuínas no âmbito do paradigma moderno, inclusive no de sua teoria crítica, já que se limitam a reiterar estratégias regulatórias do mesmo tipo. Assim, este impasse só pode ser superado com o recurso da „imaginação utópica‟, para vislumbrar os primeiros traços de novos horizontes emancipatórios e paradigmas emergentes, criando um novo senso comum emancipatório, na busca de um “conhecimento prudente para uma vida decente”.

Se a ciência moderna se baseou em uma ruptura epistemológica com o senso comum, o novo paradigma realiza uma segunda ruptura, transformando o conhecimento científico em um novo senso comum emancipatório, acentuando os componentes utópicos e libertadores do senso comum convencional. Santos sustenta que não há um princípio único de dominação, resistência e transformação social, havendo na verdade várias formas de opressão, muitas das quais negligenciadas pela teoria crítica moderna.

Assim, não é mais possível reunir todas as resistências e suas agências sob a alçada de uma mesma teoria comum e, assim, necessitamos fortemente de uma teoria da tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis, permitindo aos atores coletivos „conversarem‟ sobre as opressões a que resistem e sobre os seus ideais e utopias.

4) Algumas observações críticas e considerações finais
Como diz Santos, no atual momento podemos apenas vislumbrar os primeiros traços de novos horizontes emancipatórios e dos paradigmas emergentes de caráter interdisciplinar. Em minha opinião, nenhuma das propostas pode ser considerada totalmente satisfatória e auto-suficiente, pois se apresentam muitos pontos positivos, revelam também particularidades, limitações e problemas que precisam ser compreendidos. Algumas destas limitações já foram indicadas no livro “Complexidade e pesquisa interdisciplinar”, de minha autoria (Vasconcelos, 2002), mas podemos chamar a atenção aqui para certas críticas e idéias-força fundamentais, das quais a meu ver não se pode abrir mão:

a) A tentação problemática de se limitar apenas a um plano epistêmico comum no qual os diversos níveis da realidade pudessem ser reduzidos a características similares, sem assumir as conseqüências mais radicais das diferenças entre eles, como na proposta do inconsciente maquínico de Deleuze e Guattari. Este tipo de visão pode levar, a meu ver, a uma idealizada auto-suficiência da teoria que a formula, com se pudesse sustentar sozinha a reflexão e a prática interdisciplinar.

b) A visão idealizada de uma pretensa possibilidade de tradução de um campo epistêmico para o outro, que permitiria uma passagem mais „tranquila‟ entre eles, como na proposta wittgesteiniana de Wallner e em Boventura de Souza Santos. Neste âmbito, algumas idéias e princípios contrários à idéia de tradução são fundamentais:

- o princípio da incomensurabilidade de Khun;

- as recomendações de Hyppolite de evitar qualquer tentativa de síntese, mantendo a tensão sustentada por Freud em suas obras;

- a ênfase no contraponto e na dissonância permanente de Adorno, recusando qualquer tentativa linear de síntese entre dois campos, como teria sido proposta por exemplo no freudo-marxismo.

c) Na perspectiva inversa, a possibilidade de uma dialética negativa pode tender para a paralisia. Assim, a despeito da importância de sua ênfase no contraponto e na dissonância, em Adorno ela ganha um estatuto tão estrutural que acaba imobilizando o potencial de resistências parciais concretas.

d) As idéias de complexidade e de abordagens/práticas interdisciplinares sempre apresentam riscos de ecletismo, de circulação liberal inconseqüente, de percursos acadêmicos diletantes e de indiferenciação ético-política. É necessário reconhecer as dificuldades e as tensões na passagem entre diferentes teorias e campos de conhecimento, particularmente no campo ético-político dos valores e da práxis.

Assim, é principalmente nesta perspectiva que, em nossas práticas interdisciplinares, devemos explicitar e sustentar de forma inequívoca o nosso compromisso com projetos emancipatórios, ou seja, no campo dos valores básicos de fundo e da práxis social e política concreta.

Referências
COUTINHO, CN – Pluralismo: dimensões teóricas e políticas, in Cadernos ABESS 4, São Paulo, Cortez, 1994.
MATTOS, RA - Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In R Pinheiro e RA Mattos (org) - Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro, IMS/UERJ/ABRASCO, 2001.
MORIN, E – O método, vol IV. Mens Martins, Public. Europa-America, 1997. MORIN, E e LE MOIGNE, G – A inteligência da complexidade. Petrópolis, Vozes, 2000
VASCONCELOS, EM – Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa. Petrópolis, Vozes, 2002

Nota do blog: no link abaixo encontra-se disponibilizado o arquivo eletrônico (.PDF) mais informações sobre EPISTEMOLOGIA.
http://www.4shared.com/document/z-nx4qBi/O_que__Epistemologia.html

universitarios cybermedios.org
Un recorrido didáctico por los principales escenarios de la epistemología. Un trabajo de la FES Acatlan, México, septiembre, 2006.

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