Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

domingo, 3 de outubro de 2010

O Manifesto da Transdisciplinaridade - Basarab Nicolescu

Amanhã será tarde demais

1 NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom: São Paulo, 1999.

Duas verdadeiras revoluções atravessaram este século: a revolução quântica e a revolução informática. A revolução quântica poderia mudar radical e definitivamente nossa visão do mundo. E, no entanto, desde o começo do século XX nada aconteceu. Os massacres dos homens pêlos homens aumentam sem cessar. A antiga visão continua senhora deste mundo. De onde vem esta cegueira? De onde vem este desejo perpétuo de fazer o novo com o antigo? A novidade irredutível da visão quântica continua pertencendo a uma pequena elite de cientistas de ponta. A dificuldade de transmissão de uma nova linguagem hermética — a linguagem matemática — é, sem dúvida, um obstáculo considerável; porém não intransponível. De onde vem este desprezo pela Natureza, que se pretende, sem nenhum argumento sério, muda e impotente no plano do sentido de nossa vida?

A revolução informática, que se desenrola diante de nossos olhos maravilhados e inquietos, poderia levar a uma grande liberação do tempo, a ser assim consagrado à nossa vida e não, como para a maioria dos seres sobre esta Terra, à nossa sobrevivência. Ela poderia levar a uma partilha de conhecimentos entre todos os humanos, prelúdio de uma riqueza planetária compartilhada. Mas, aí também, nada acontece. Os comerciantes apressam-se para colonizar o espaço cibernético e profetas incontáveis só nos falam dos perigos iminentes. Porque somos tão inventivos, em todas as situações, em descobrir todos os perigos possíveis e imaginários, mas tão pobres quando se trata de propor, de construir, de erguer, de fazer emergir o que é novo e positivo, não num futuro distante, mas no presente, aqui e agora?

O crescimento contemporâneo dos saberes não tem precedentes na história humana. Exploramos escalas outrora inimagináveis: do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, do infinitamente curto ao infinitamente longo. A soma dos conhecimentos sobre o Universo e os sistemas naturais, acumulados durante o século XX, ultrapassa em muito tudo aquilo que pôde ser conhecido durante todos os outros séculos reunidos. Como se explica que quanto mais sabemos do que somos feitos, menos compreendemos quem somos? Como se explica que a proliferação acelerada das disciplinas torne cada vez mais ilusória toda unidade do conhecimento? Como se explica que quanto mais conheçamos o universo exterior, mais o sentido de nossa vida e de nossa morte seja deixado de lado como insignificante e até absurdo? A atrofia do ser interior seria o preço a ser pago pelo conhecimento científico? A felicidade individual e social, que o cientificismo nos prometia, afasta-se indefinidamente como uma miragem. Dirão a nós que a humanidade sempre esteve em crise e que sempre encontrou os meios para sair dela. Esta afirmação era verdadeira outrora. Hoje, equivale a uma mentira. Pois, pela primeira vez em sua história, a humanidade tem a possibilidade de destruir a si mesma inteiramente, sem nenhuma possibilidade de retorno. Esta destruição potencial de nossa espécie tem uma tripla dimensão: material, biológica e espiritual. Na era da razão triunfante, o irracional é mais atuante que nunca.

As armas nucleares acumuladas na superfície de nosso planeta podem destruí-lo completamente várias vezes, como se uma única vez não bastasse. A guerra branda substitui a guerra fria. Ontem as armas eram zelosamente guardadas por algumas potências; hoje passeia-se com suas peças desmontadas debaixo do braço de um lado para outro do planeta e amanha estarão à disposição de qualquer pequeno tirano. Qual seria o milagre da dialética que faz com que sempre se pense na guerra quando falamos da paz? De onde vem a loucura assassina do ser humano? De onde vem sua misteriosa e imensa capacidade de esquecer? Milhões de mortos por nada, sob nossos olhos insensíveis, hoje, em nome de ideologias passageiras e dos inúmeros conflitos cujo motivo profundo nos escapa. Pela primeira vez em sua história, o ser humano pode modificar o patrimônio genético de nossa espécie. Na falta de uma nova visão do mundo, deixar o barco correr equivale a uma autodestruição biológica potencial. Não avançamos nem um milímetro no que diz respeito às grandes questões metafísicas, mas nos permitimos intervir nas entranhas de nosso ser biológico. Em nome do que?

Sentados em nossa cadeira, podemos viajar à velocidade máxima permitida pela Natureza: a velocidade da luz. O tamanho da Terra reduz-se progressivamente a um ponto: o centro de nossa consciência. Devido ao casamento insólito entre nosso próprio corpo e a máquina informática, podemos modificar livremente nossas sensações até criarmos uma realidade virtual, aparentemente mais verdadeira que a realidade de nossos órgãos dos sentidos. Nasceu assim, imperceptivelmente, um instrumento de manipulação das consciências em escala planetária. Em mãos imundas, este instrumento pode levar à destruição espiritual de nossa espécie.

Esta tripla destruição potencial — material, biológica e espiritual — é, na verdade, o produto de uma "tecnociência" cega, mas triunfante, que só obedece à implacável lógica da eficácia pela eficácia. Mas como pedir a um cego que enxergue?

Paradoxalmente, tudo está estabelecido para nossa autodestruição, mas tudo também está estabelecido para uma mutação positiva comparável às grandes reviravoltas da História. O desafio da autodestruição tem sua contrapartida na esperança do autonascimento. O desafio planetário da morte tem sua contrapartida numa consciência visionária, transpessoal e planetária, que se alimenta do crescimento fabuloso do saber. Não sabemos para que lado penderá a balança. Por isto é necessário agir com rapidez, agora. Pois amanhã será tarde demais.

Grandeza e decadência do cientificismo

Desde a noite dos tempos a mente humana permanece obcecada pela idéia de leis e de ordem, que dão sentido ao Universo onde vivemos e à nossa própria vida. Os antigos inventaram assim a noção metafísica, mitológica e metafórica de cosmo. Eles se acomodavam muito bem a uma Realidade multidimensional, povoada de diversas entidades, dos homens aos deuses, passando eventualmente por toda uma série de intermediários. Estas diferentes entidades viviam em seu próprio mundo, regido por suas próprias leis, mas estavam interligadas por leis cósmicas comuns geradoras de uma ordem cósmica comum. Assim os deuses podiam intervir nos assuntos dos homens, os homens eram às vezes semelhantes aos deuses e tudo tinha um
sentido, ora mais, ora menos escondido, mas ainda assim um sentido. A ciência moderna nasceu de uma ruptura brutal em relação à antiga visão de mundo. Ela está fundamentada numa idéia, surpreendente e revolucionária para a época, de uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a Realidade, tida como completamente independente ao indivíduo que a observa.

Mas, ao mesmo tempo, a ciência moderna estabelecia três postulados fundamentais, que prolongavam, a um grau supremo, no plano da razão, a busca de leis e da ordem:
1. A existência de leis universais, de caráter matemático.
2. A descoberta destas leis pela experiência cientifica.
3. A reprodutibilidade perfeita dos dados experimentais.

Uma linguagem artificial, diferente da linguagem da tribo — as matemáticas — era assim elevada, por Galileu, ao nível de linguagem comum entre Deus e os homens. Os sucessos extraordinários da física clássica, de Galileu, Kepler e Newton até Einstein, confirmaram a justeza destes três postulados. Ao mesmo tempo, eles contribuíram para a instauração de um paradigma da
simplicidade, que se tornou predominante na entrada do século XIX. A física clássica conseguiu construir, ao longo de dois séculos, uma visão do mundo apaziguante e otimista, pronto a acolher, no plano individual e social, o surgimento da idéia de progresso.

A física clássica está fundamentada na idéia de continuidade, de acordo com a evidência fornecida pelos órgãos dos sentidos: não se pode passar de um ponto a outro do espaço e do tempo sem passar por todos os pontos intermediários. Além disso, os físicos já tinham à sua disposição um aparelho matemático fundado na continuidade: o cálculo infinitesimal de Leibniz e Newton.

A idéia de continuidade está intimamente ligada a um conceito chave da física clássica: a causalidade local. Todo fenômeno físico poderia ser compreendido por um encadeamento contínuo de causas e efeitos: a cada causa em um ponto dado corresponde um efeito em um ponto infinitamente próximo e a cada efeito em um ponto dado corresponde uma causa em um ponto infinitamente próximo. Assim dois pontos separados por uma distância, mesmo que infinita, no espaço e no tempo, estão, todavia, ligados por um encadeamento contínuo de causas e efeitos: não há necessidade alguma de qualquer ação direta à distância. A causalidade mais rica dos antigos, como, por exemplo, a de Aristóteles, era reduzida a um só destes aspectos: a causalidade local. Uma causalidade formal ou uma causalidade final já não tinha seu lugar na física clássica. As conseqüências culturais e sociais de uma tal amputação, justificada pêlos sucessos da física clássica, são incalculáveis. Mesmo hoje aqueles muitos que não têm agudos conhecimentos de filosofia, consideram como uma evidência indiscutível a equivalência entre "a causalidade" e "a causalidade local", a tal ponto que o adjetivo "local" é, na maioria dos casos, omitido.

O conceito de determinismo podia realizar assim sua entrada triunfante na história das idéias. As equações da física clássica são de tal natureza que, se soubermos as posições e as velocidades dos objetos físicos num dado instante, podemos prever suas posições e velocidades em qualquer outro momento do tempo. As leis da física clássica são leis deterministas. Os estados físicos sendo funções de posições e de velocidades, resultando daí que, se especificamos as condições iniciais (o estado físico num determinado instante), podemos prever completamente o estado físico em qualquer outro momento dado do tempo.

É evidente que a simplicidade e a beleza estética de tais conceitos — continuidade, causalidade local, determinismo — tão operativos na Natureza, tenham fascinado os maiores espíritos destes quatro últimos séculos, incluindo o nosso. Faltava dar um passo que já não era de natureza científica, mas de natureza filosófica e ideológica: proclamar a física rainha das ciências. Mais precisamente, reduzir tudo à física e o biológico e o psíquico aparecendo apenas como etapas evolutivas de um único e mesmo fundamento. Este passo foi facilitado pelos avanços indiscutíveis da física. Assim nasceu a ideologia cientificista, que surgiu como uma ideologia de vanguarda e que experimentou uma extraordinária disseminação no século XIX.

Com efeito, perspectivas inusitadas abriram-se diante do espírito humano. Se o Universo não passasse de uma máquina perfeitamente regulada e perfeitamente previsível, Deus poderia ser relegado à condição de simples hipótese, não necessária para explicar o funcionamento do Universo. O Universo foi subitamente dessacralizado e sua transcendência jogada nas trevas do irracional e da superstição. A Natureza oferecia-se ao homem como uma amante, para ser penetrada em suas profundezas, dominada, conquistada. Sem cair na tentação de uma psicanálise do cientificismo. somos obrigados a constatar que os escritos cientificistas do século XIX sobre a Natureza estão repletos de alusões sexuais das mais desenfreadas. Seria de se espantar que a feminilidade do mundo tivesse sido negligenciada, ultrajada, esquecida numa civilização baseada na conquista, na dominação, na eficácia a qualquer preço? Como conseqüência funesta, mas inevitável, a mulher é geralmente condenada a desempenhar um papel menor na organização social.

Na euforia cientificista da época, era natural postular, como Marx e Engels o fizeram, o isomorfismo entre as leis econômicas, sociais, históricas e as leis da Natureza. Todas as idéias marxistas estão baseadas, em última análise, nos conceitos provenientes da física clássica: continuidade, causalidade local, determinismo, objetividade. Se a História submete-se, como a Natureza, a leis objetivas e deterministas, podemos fazer tábua rasa do passado, por uma revolução social ou qualquer outro meio. Com efeito, tudo o que importa é o presente, como condição inicial mecânica. Impondo certas condições iniciais sociais bem determinadas, podemos prever de maneira infalível o futuro da humanidade. Basta que as condições iniciais sejam impostas em nome do bem e do verdadeiro — por exemplo, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade — para construir a sociedade ideal. A experiência foi feita em escala planetária, com os resultados que conhecemos. Quantos milhões de mortos por alguns dogmas? Quanto sofrimento em nome do bem e da verdade? Como idéias tão generosas em sua origem transformaram-se em seus opostos?

No plano espiritual, as conseqüências do cientificismo também foram consideráveis. Um conhecimento digno deste nome só pode ser científico, objetivo. A única Realidade digna deste nome era, naturalmente, a realidade objetiva, regida por leis objetivas. Todo conhecimento, além do científico, foi afastado para o inferno da subjetividade, tolerado no máximo como ornamento, ou rejeitado com desprezo como fantasma, ilusão, regressão, produto da imaginação. A própria palavra "espiritualidade" tornou-se suspeita e seu uso foi praticamente abandonado.

A objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma conseqüência inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do homem, que anuncia tantas outras mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo. O ser humano torna-se objeto: objeto da exploração do homem pelo homem, objeto de experiências de ideologias que se anunciam científicas, objeto de estudos científicos para ser dissecado, formalizado e manipulado. O homem-Deus é um homem objeto cuja única saída é se autodestruir. Os dois massacres mundiais deste século, sem levar em conta as inúmeras guerras locais, que também fizeram incontáveis cadáveres, não passam do prelúdio de uma autodestruição em escala planetária. Ou, talvez, de um autonascimento. No fundo, além da imensa esperança que suscitou, o cientificismo nos legou uma idéia persistente e tenaz: a da existência de um único nível de Realidade, no qual a única verticalidade concebível é a da pessoa ereta numa Terra regida pela lei da gravidade universal.

Física quântica e níveis de Realidade

Por uma dessas estranhas coincidências, das quais a História possui os segredos, a mecânica quântica, a primeira guerra mundial e a revolução russa surgiram praticamente ao mesmo tempo. Violência e massacres no plano do visível e revolução quântica no plano do invisível. Como se os espasmos visíveis do mundo antigo fossem acompanhados pelo surgimento discreto, quase imperceptível, dos primeiros sinais do novo mundo. Os dogmas e as ideologias que devastaram o século XX vieram do pensamento clássico, baseados nos conceitos da física clássica. Uma nova visão do mundo iria arruinar os fundamentos de um pensamento que não parou de acabar.

No começo do século XX, Max Planck confrontou-se com um problema de física, de aparência inocente, como todos os problemas de física. Mas, para resolvê-lo, ele foi conduzido a uma descoberta que provocou nele, segundo seu próprio testemunho, um verdadeiro drama interior. Pois ele tinha se tornado a testemunha da entrada da descontinuidade no campo da física. Conforme a descoberta de Planck, a energia tem uma estrutura discreta, descontínua. O "quantum" de Planck, que deu seu nome à mecânica quântica, iria revolucionar toda física e mudar profundamente nossa visão do mundo. Como compreender a verdadeira descontinuidade, isto é, imaginar que entre dois pontos não há nada, nem objetos, nem átomos, nem moléculas, nem partículas, apenas nada. Aí, onde nossa imaginação habitual experimenta uma enorme vertigem, a linguagem matemática, baseada num outro tipo de imaginário, não encontra nenhuma dificuldade. Galileu tinha razão: a linguagem matemática tem uma natureza diversa da linguagem humana habitual.

Colocar em questão a continuidade significa colocar em questão a causalidade local e abrir assim uma temível caixa de Pandora. Os fundadores da mecânica quântica — Planck, Bohr, Einstein, Pauli, Heisenberg, Dirac, Schrödinger, Bohm, de Broglie e alguns outros, que também tinham uma sólida cultura filosófica, estavam plenamente conscientes do desafio cultural e social de suas próprias descobertas. Por isto avançavam com grande prudência, enfrentando polêmicas acirradas. Porém, enquanto cientistas, eles tiveram que se inclinar, não importando suas convicções religiosas ou filosóficas, diante das evidências experimentais e da autoconsistência teórica.

Assim começou uma extraordinária Mahabharata moderna, que iria atravessar o século XX e chegar até os nossos dias. Para esclarecer a metodologia da transdisciplinaridade, o autor optou por, ao longo de dois ou três capítulos, explanar os resultados um pouco abstratos da física quântica. O leitor é, portanto, convidado a percorrer algumas considerações teóricas antes de entrar no cerne da questão. O formalismo da mecânica quântica e posteriormente, o da física quântica (que se disseminou depois da segunda guerra mundial, com a construção dos grandes aceleradores de partículas), tentaram, é verdade, salvaguardar a causalidade local tal como a conhecemos na escala macrofísica. Mas era evidente, desde o começo da mecânica quântica, que um novo tipo de causalidade devia estar presente na escala quântica, a escala do infinitamente pequeno e do infinitamente breve. Uma quantidade física tem, segundo a mecânica quântica, diversos valores possíveis, afetados por probabilidades bem determinadas. No entanto, numa medida experimental, obtém-se, evidentemente, um único resultado para a quantidade física em questão. Esta abolição brusca da pluralidade dos valores possíveis de um "observável" físico, pelo ato de medir, tinha uma natureza obscura mas indicava claramente a existência de um novo tipo de causalidade.

Sete décadas após o nascimento da mecânica quântica, a natureza deste novo tipo de causalidade foi esclarecida graças a um resultado teórico rigoroso — o teorema de Bell — e a experiências de uma grande precisão. Um novo conceito adentrava assim na física: a não separabilidade. Em nosso mundo habitual, macrofísico, se dois objetos interagem num momento dado e em seguida se afastam, eles interagem, evidentemente, cada vez menos. Pensemos em dois amantes obrigados a se separar, um numa galáxia e outro noutra. Normalmente, seu amor tende a diminuir e acabar por desaparecer. No mundo quântico as coisas acontecem de maneira diferente. As entidades quânticas continuam a interagir qualquer que seja o seu afastamento. Isto parece contrário a nossas leis macrofísicas. A interação pressupõe uma ligação, um sinal e este sinal tem, segundo a teoria da relatividade de Einstein, uma velocidade limite: a velocidade da luz. Poderiam as interações quânticas ultrapassar este barreira da luz? Sim, se insistirmos em conservar, a todo custo, a causalidade local, e pagando o preço de abolir a teoria da relatividade. Não, se aceitarmos a existência de um novo tipo de causalidade: uma causalidade global'que concerne o sistema de todas as entidades físicas, em seu conjunto. E, no entanto, este conceito não é tão surpreendente na vida diária. Uma coletividade — família, empresa, nação — é sempre mais que a simples soma de suas partes. Um misterioso fator de interação, não redutível às propriedades dos diferentes indivíduos, está sempre presente nas coletividades humanas, mas nós sempre o repelimos para o inferno da subjetividade. E somos forçados a reconhecer que em nossa pequena Terra estamos longe, muito longe da não separabilidade humana.

Em todo caso, a não separabilidade quântica não põe em dúvida a própria causalidade, mas uma de suas formas, a causalidade local. Ela não põe em dúvida a objetividade científica, mas uma de suas formas: a objetividade clássica, baseada na crença de ausência de qualquer conexão não local. A existência de correlações não locais expande o campo da verdade, da Realidade. A não separabilidade quântica nos diz que há, neste mundo, pelo menos numa certa escala, uma coerência, uma unidade das leis que asseguram a evolução do conjunto dos sistemas naturais.

Um outro pilar do pensamento clássico — o determinismo — iria, por sua vez, desmoronar.

As entidades quânticas: os quantuns são muito diferentes dos objetos da física clássica: os corpúsculos e as ondas. Se quisermos a qualquer preço ligá-los aos objetos clássicos, seremos obrigados a concluir que os quantuns são, ao mesmo tempo, corpúsculos e ondas, ou mais precisamente, que eles não são nem partículas nem ondas. Se houver uma onda, trata-se, antes, de uma onda de probabilidade, que nos permite calcular a probabilidade de realização de um estado final a partir de um certo estado inicial. Os quantuns caracterizam-se por uma certa extensão de seus atributos físicos, como, por exemplo, suas posições e suas velocidades. As célebres relações de Heisenberg mostram, sem nenhuma ambiguidade, que é impossível localizar um quantum num ponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo. Em outras palavras, é impossível traçar uma trajetória bem determinada de uma partícula quântica. O indeterminismo reinante na escala quântica é um indeterminismo constitutivo, fundamental, irredutível, que de maneira nenhuma significa acaso ou imprecisão.

O aleatório quântico não é acaso.

A palavra "acaso" vem do árabe az-zahr que quer dizer "jogo de dados". Com efeito, é impossível localizar uma partícula quântica ou dizer qual é o átomo que se desintegra num momento preciso. Mas isto não significa de modo algum que o acontecimento quântico seja um acontecimento fortuito, devido a um jogo de dados (jogado por quem?): simplesmente, as questões formuladas não têm sentido no mundo quântico. Elas não têm sentido porque pressupõe a existência de uma trajetória localizável, a continuidade, a causalidade local. No fundo, o conceito de "acaso", como o de "necessidade", são conceitos clássicos. O aleatório quântico é ao mesmo tempo acaso e necessidade ou, mais precisamente, nem acaso nem necessidade. O aleatório quântico é um aleatório construtivo, que tem um sentido: o da construção de nosso próprio mundo macrofísico. Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais grosseira. As duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula quântica ao cosmo. Indeterminismo não quer de maneira alguma dizer "imprecisão", se a noção de "precisão" não estiver implicitamente ligada, de maneira talvez inconsciente, às noções de trajetórias localizáveis, continuidade e causalidade local. As previsões da mecânica quântica sempre foram, até o presente, verificadas com uma grande precisão por inúmeras experiências. Porém, esta precisão diz respeito aos atributos próprios às entidades quânticas e não aos dos objetos clássicos. Aliás, mesmo no mundo clássico, a noção de precisão acaba de ser fortemente questionada pela teoria do "caos". Uma minúscula imprecisão das condições iniciais leva a trajetórias clássicas extremamente divergentes ao longo do tempo. O caos instala-se no próprio seio do determinismo. Os planificadores de toda espécie, os construtores de sistemas ideológicos, econômicos ou outros, ainda podem existir num mundo que é ao mesmo tempo indetreminista e caótico?

O maior impacto cultural da revolução quântica é, sem dúvida, o de colocar em questão o dogma filosófico contemporâneo da existência de um único nível de Realidade. Damos ao nome "realidade" seu significado tanto pragmático como ontológico. Entendo por Realidade, em primeiro lugar, aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas. A física quântica nos fez descobrir que a abstração não é um simples intermediário entre nós e a Natureza, uma ferramenta para descrever a realidade, mas uma das partes constitutivas da Natureza. Na física quântica, o formalismo matemático é inseparável da experiência. Ele resiste, a seu modo, tanto por seu cuidado pela autoconsistência interna como por sua necessidade de integrar os dados experimentais, sem destruir esta autoconsistência. Também noutro lugar, na realidade chamada "virtual" ou nas imagens de síntese, são as equações matemáticas que resistem: a mesma equação matemática dá origem a uma infinidade de imagens. As imagens estão latentes nas equações ou nas séries de números. Portanto, a abstração é parte integrante da Realidade.

É preciso dar uma dimensão ontológica à noção de Realidade, na medida em que a Natureza participa do ser do mundo. A Natureza é uma imensa e inesgotável fonte de desconhecido que justifica a própria existência da ciência. A Realidade não é apenas uma construção social o consenso de uma coletividade, um acordo intersubjetivo. Ela também tem uma dimensão trans-subjetiva, na medida em que um simples fato experimental pode arruinar a mais bela teoria científica. Infelizmente, no mundo dos seres humanos, uma teoria sociológica, econômica ou política continua a existir apesar de múltiplos fatos que a contradizem.

Deve-se entender por nível de Realidade um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do mundo macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de Realidade são diferentes se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade). Ninguém conseguiu encontrar um formalismo matemático que permita a passagem rigorosa de um mundo ao outro. As sutilezas semânticas, as definições tautológicas ou as aproximações não podem substituir um formalismo matemático rigoroso. Há, mesmo, fortes indícios matemáticos de que a passagem do mundo quântico para o mundo macrofísico seja sempre impossível. Contudo, não há nada de catastrófico nisso. A descontinuidade que se manifestou no mundo quântico manifesta-se também na estrutura dos níveis de Realidade Isto não impede os dois mundos de coexistirem. A prova: nossa própria existência. Nossos corpos têm ao mesmo tempo uma estrutura macrofísica e uma estrutura quântica. Os níveis de Realidade são radicalmente diferentes dos níveis de organização, tais como foram definidos nas abordagens sistêmicas. Os níveis de organização não pressupõem uma ruptura dos conceitos fundamentais: vários níveis de organização pertencem a um único e mesmo nível de Realidade. Os níveis de organização correspondem a estruturações diferentes das mesmas leis fundamentais. Por exemplo, a economia marxista e a física clássica pertencem a um único e mesmo nível de Realidade.

O surgimento de pelo menos dois níveis de Realidade diferentes no estudo dos sistemas naturais é um acontecimento de capital importância na historia do conheci-mento. Ele pode nos levar a repensar nossa vida individual e social, a fazer uma nova leitura dos conhecimentos antigos, a explorar de outro modo o conhecimento de nós mesmos, aqui e agora. A existência dos níveis de Realidade diferentes foi afirmada por diferentes tradições e civilizações, mas esta afirmação estava baseada seja em dogmas religiosos, seja na exploração do universo interior.

Em nosso século, Husserl e alguns outros pesquisadores, num esforço de questionamento a respeito dos fundamentos da ciência, descobriram a existência dos diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito observador. Mas eles foram marginalizados pelos filósofos acadêmicos e incompreendidos pêlos físicos, fechados em sua própria especialidade. De fato, eles foram pioneiros na exploração de uma Realidade multidimensional e multireferencial, onde o ser humano pode reencontrar seu lugar e sua verticalidade.

Um bastão sempre tem duas extremidades

O desenvolvimento da física quântica, assim como a coexistência entre o mundo quântico e o mundo macrofísico, levaram, no plano da teoria e da experiência científica, ao aparecimento de pares de contraditórios mutuamente exclusivos (A e não-A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc. Por exemplo, as equações da física quântica submetem-se a um grupo de simetrias, mas suas soluções quebram estas simetrias. Da mesma forma, supõe-se que um grupo de simetria descreva a unificação de todas as interações físicas conhecidas, mas esta simetria deve ser quebrada para poder descrever a diferença entre as interações forte, fraca, eletromagnética e gravitacional.

O problema da flecha do tempo sempre fascinou os espíritos. Nosso nível macrofísico caracteriza-se pela irreversibilidade (a flecha) do tempo. Caminhamos do nascimento para a morte, da juventude para a velhice. O inverso é impossível. A flecha do tempo está associada à entropia, ao crescimento da desordem. Por outro lado, o nível microfísico caracteriza-se pela invariância temporal (reversibilidade do tempo). Tudo se passa como se, na maioria dos casos, um filme rodado no sentido inverso, produzisse exatamente as mesmas imagens do que quando rodado no sentido correto. Há, no mundo microfísico, alguns processos que violentam esta invariância temporal. As exceções estão intimamente ligadas ao nascimento do universo, mais precisamente à predominância da matéria sobre a antimatéria. O Universo é feito de matéria e não de antimatéria, graças a esta pequena violação da invariância temporal. Esforços notáveis foram feitos para introduzir uma flecha do tempo também no nível microfísico, mas, por enquanto, nada se conseguiu. A mecânica quântica não pôde ser substituída por uma teoria mais preditível. Devemos nos habituar à coexistência paradoxal da reversibilidade e da irreversibilidade do tempo, um dos aspectos da existência de diferentes níveis de Realidade. Ora, o tempo está no centro de nossa vida terrestre. É necessário ressaltar que o tempo dos físicos já é uma aproximação grosseira do tempo dos filósofos. Nenhum filósofo conseguiu seriamente definir o momento presente. "Quanto ao tempo presente," — já dizia Santo Agostinho — "se ele sempre fosse presente e não passasse, deixaria de ser um tempo, seria a eternidade. Portanto, se o tempo só é tempo porque ele passa, como podemos dizer que ele é, ele que só é porque está a ponto de deixar de ser; e portanto não é verdade dizer que só é um tempo porque tende ao não-ser.". O tempo presente dos filósofos é um tempo vivo. Ele contém em si mesmo tanto o passado como o futuro, não sendo o passado nem o futuro. O pensamento é impotente para apreender toda a riqueza do tempo presente.

Os físicos aboliram a diferença essencial entre o presente de um lado e o passado e o futuro de outro, substituindo o tempo por uma banal linha do tempo onde os pontos representam sucessivamente e indefinidamente os momentos passados, presentes e futuros. O tempo torna-se assim um simples parâmetro(da mesma manei-ra que uma posição no espaço), que pode ser perfeitamente compreendido pelo pensamento e perfeitamente descrito no plano matemático.

A nível macrofísico esta linha do tempo é dotada de uma flecha indicando a passagem do passado para o futuro. Esta linha do tempo, dotada de um flecha, é, portanto ao mesmo tempo uma representação matemática simples e uma representação antropomórfica. A grande surpresa é constatar que até uma representação matemática, portanto rigorosa, do tempo, de acordo com a informação que nos é fornecida por nossos órgãos dos sentidos, é colocada em dúvida pelo surgimento do nível quântico, como nível de Realidade diferente do nível macrofísico. Será que o tempo dos físicos conserva apesar de tudo, uma lembrança do tempo vivo dos filósofos, graças à intervenção sempre inesperada da Natureza? Todavia, apesar de tudo, esta coexistência paradoxal não é tão surpreendente quando nos referimos a nossa experiência de vida. Todos nós sentimos que nosso tempo de vida não é a vida de nosso tempo. A vida, nossa vida, é algo mais que um objeto delimitado no espaço e no tempo. Mas o surpreendente é constatar que um vestígio desse tempo vivo encontra-se na Natureza. Seria a Natureza, não um livro morto que está a nossa disposição para ser decifrado, mas um livro vivo, sendo continuamente escrito?

O escândalo intelectual provocado pela mecânica quântica consiste no fato de que os pares de contraditórios que ela coloca em evidência são de fato mutuamente opostos quando analisados através da grade de leitura da lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas:

1. O axioma da identidade: A é A;
2. O axioma da não-contradição: A não é não-A;
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de "terceiro incluído") que é ao mesmo tempo Ae não-A.

Na hipótese da existência de um único nível de Realidade, o segundo e terceiro axiomas são evidentemente equivalentes. O dogma de um único nível de Realidade, arbitrário como todo dogma, está de tal forma implantado em nossas consciências, que mesmo lógicos de profissão esquecem de dizer que estes dois axiomas são, de fato, distintos, independentes um do outro. Se, no entanto, aceitamos esta lógica que, apesar de tudo reinou, durante dois milênios e continua a dominar o pensamento de hoje, em particular no campo político, social e econômico, chegamos imediatamente à conclusão de que os pares de contraditórios postos em evidência pela física quântica são mutuamente exclusivos, pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e não-A. A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos afirmar, se formos sãos de espírito, que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a mulher, a vida é a morte?

O problema pode parecer da ordem da pura abstração, interessando alguns lógicos, físicos ou filósofos. Em que a lógica abstraia seria importante para nossa vida de todos os dias?

A lógica é a ciência que tem por objeto de estudo as normas da verdade (ou da "validade", se a palavra "verdade" for forte demais em nossos dias). Sem norma, não há ordem. Sem norma, não há leitura do mundo e, portanto, nenhum aprendizado, sobrevivência e vida. Fica claro, portanto, que de maneira muitas vezes inconsciente, uma certa lógica e mesmo uma certa visão do mundo estão por trás de cada ação, qualquer que seja: a ação de um indivíduo, de uma coletividade, de uma nação, de um estado. Uma certa lógica determina, em particular, a regulação social.

Desde a constituição definitiva da mecânica quântica, por volta dos anos 30, os fundadores da nova ciência se questionaram agudamente sobre o problema de uma nova lógica, chamada "quântica". Após os trabalhos de Birkhoff e Von Neumann, toda uma proliferação de lógicas quânticas não tardou a se manifestar. A ambição dessas novas lógicas era resolver os paradoxos gerados pela mecânica quântica e tentar, na medida do possível, chagar a uma potência preditiva mais forte do que a permitida com a lógica clássica. Por uma feliz coincidência, esta proliferação de lógicas quânticas foi contemporânea à proliferação de novas lógicas formais, rigorosas no plano matemático, que tentavam alargar o campo de validade da lógica clássica. Este fenômeno era relativamente novo pois, durante dois milênios, o ser humano acreditou que a lógica fosse única, imutável, dada uma vez por todas, inerente a seu próprio cérebro.

Há, no entanto uma relação direta entre a lógica e o meio ambiente: meio ambiente físico, químico, biológico, psíquico, macro ou micro sociológico. Ora, o meio ambiente, assim como o saber e a compreensão, mudam com o tempo. Portanto, a lógica só pode ter um funda-mento empírico. A noção de história da lógica é muito recente — aparece no meio do século XIX. Pouco tempo depois aparece uma outra noção capital: a da História do Universo. Outrora, o universo, como a lógica, era considerado eterno e imutável. A maioria das lógicas quântica modificou o segundo axioma da lógica clássica: o axioma da não-contradição, introduzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lugar daquela do par binário (A, não-A). Estas lógicas multivalentes, cujo estatuto ainda é controvertido quanto a seu poder preditivo, não levaram em conta uma outra possibilidade, a modificação do terceiro axioma — o axioma do terceiro excluído. O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multivalente (com três valores: A, não-A e T) e não-contraditória. Lupasco, como Husserl, pertencia à raça dos pioneiros. Sua filosofia, que toma como ponto de partida a física quântica, foi marginalizada por físicos e filósofos. Curiosamente, ela teve em contrapartida um poderoso impacto, ainda que subterrânea, entre os psicólogos, os sociólogos, os artistas ou os historiadores das religiões. Lupasco teve razão cedo demais. A ausência da noção de "níveis de Realidade" em sua filosofia obscurecia talvez seu conteúdo. Muitos acreditaram que a lógica de Lupasco violava o principio da não-contradição — de onde provém o nome, um pouco infeliz, de "lógica da contradição" — e que admitia o risco de infindáveis sutilezas semânticas. Além disso, o medo visceral de introduzir a noção de "terceiro incluído", com suas ressonâncias mágica, só fez com que aumentasse a desconfiança em tal lógica.

A compreensão do axioma do terceiro incluído — existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A — fica totalmente clara quando é introduzida a noção de "níveis de Realidade". Para se chegar a uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representemos os três termos da nova lógica — A, não-A e T — e seus dinamismos associados por um triângulo onde um dos ângulos situa-se a um nível de Realidade e os dois outros a um outro nível de Realidade. Se permanecermos num único nível de realidade, toda manifestação aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo não-A). O terceiro dinamismo, o do estado T, exerce-se num outro nível de Realidade, onde aquilo que parece desunido (onda ou corpúsculo) está de fato unido (quantum), e aquilo que parece contraditório é percebido como não-contraditório.

É a projeção de T sobre um único e mesmo nível de Realidade que produz a impressão de pares antagônicos, mutuamente exclusivos (A e não-A). Um único e mesmo nível de Realidade só pode provocar oposições antagônicas. Ele é, por sua própria natureza, autodestruidor, se for completamente separado de todos os outros níveis de Realidade. Um terceiro termo, digamos, T', que esteja situado no mesmo nível de Realidade que os opostos A e não-A, não pode realizar sua conciliação. A "síntese" entre A e não-A é antes uma explosão de imensa energia, como a produzida pelo encontro entre matéria e antimatéria. Nas mãos de marxistasleninistas,
a síntese hegeliana surgia como o resultado radioso de uma sucessão no plano histórico: sociedade primitiva (tese), sociedade capitalista (antítese), sociedade comunista (síntese). Infelizmente, ela se metamorfoseou em seu contrário. Em verdade, a queda inesperada do império soviético estava inexoravelmente inscrita na própria lógica do sistema. Uma lógica nunca é inocente. Ela pode chegar a fazer milhões de mortos. Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro incluído os três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-seno tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade mais ampla que os inclui. Vemos assim os grandes perigos de mal-entendidos gerados pela confusão bastante comum entre o axioma de terceiro excluído e o axioma de não-contradição. A lógica do terceiro incluído é não-contraditória, no sentido de que o axioma da não-contradição é perfeitamente respeitado, com a condição de que as noções de "verdadeiro" e "falso" sejam alargadas, de tal modo que as regras de implicação lógica digam respeito não mais a dois termos (A e não-A), mas a três termos (A, não-A e T), coexistindo no mesmo momento do tempo. É uma lógica formal, da mesma maneira que qualquer outra lógica formal: suas regras traduzem-se por um formalismo matemático relativamente simples.

Vê-se porque a lógica do terceiro incluído não é simplesmente uma metáfora para um ornamento arbitrário da lógica clássica, permitindo algumas incursões aventureiras e passageiras no campo da complexidade. A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua lógica privilegiada, na medida em que permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes campos do conhecimento. A lógica do terceiro incluído não elimina a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada por situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político. Ela age, nestes casos, como uma verdadeira lógica de exclusão: bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou homens, ricos ou pobres, brancos ou negros. Seria revelador fazer uma análise da xenofobia, do racismo, do anti-semitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro excluído. Seria também muito instrutivo passar os discursos dos políticos pelo crivo da mesma lógica.

A sabedoria popular exprime algo muito profundo quando nos diz que um bastão sempre tem duas extremidades. Imaginemos, como na paródia Lê bout du bout de Raymond Devos (que, aliás, compreendeu melhor que muitos eruditos o sentido do terceiro incluído) que um homem queira, a todo custo, separar as duas extremidades de um bastão. Ele vai cortar seu bastão e perceber que agora tem, não apenas duas extremidades, mas dois bastões. Ele vai continuar a cortar cada vez mais nervosamente seu bastão, porém, embora estes se multipliquem sem parar, é impossível separar as duas extremidades!

Estaremos nós, em nossa civilização atual, na situação do homem que queria a todo custo separar as duas extremidades de seu bastão? À barbárie da exclusão do terceiro responde a inteligência da inclusão. Pois um bastão sempre tem duas extremidades.

0 surgimento da pluralidade complexa

Simultaneamente ao aparecimento dos diferentes níveis de Realidade e das novas lógicas (entre elas a do terceiro incluído) no estudo dos sistemas naturais, um terceiro fator veio se juntar para desferir o golpe de misericórdia na visão clássica do mundo: a complexidade. Ao longo do século XX, a complexidade instala-se por toda parte, assustadora, terrificante, obscena, fascinante, invasora, como um desafio a nossa própria existência e ao sentido de nossa própria existência. A complexidade em todos os campos do conhecimento parece ter fagocitado o sentido.

A complexidade nutre-se da explosão da pesquisa disciplinar e, por sua vez, a complexidade determina a aceleração da multiplicação das disciplinas. A lógica binária clássica confere seus títulos de nobreza a uma disciplina cientifica ou não cientifica. Graças a suas normas de verdade, uma disciplina pode pretender esgotar inteiramente o campo que lhe e próprio. Se esta disciplina for considerada fundamental, como a pedra de toque de todas as outras disciplinas, este campo alarga-se implicitamente a todo conhecimento humano. Na visão clássica do mundo, a articulação das disciplinas era considerada piramidal, sendo a base da pirâmide representada pela física. A complexidade pulveriza literalmente esta pirâmide provocando um verdadeiro bigbang disciplinar. 0 universo parcelado disciplinar esta em plena expansão em nossos dias.
De maneira inevitável, o campo de cada disciplina torna-se cada vez mais estreito, fazendo com que a comunicação entre elas fique cada vez mais difícil, até impossível. Uma realidade multiesquizofrênica complexa parece substituir a realidade unidimensional simples do pensamento clássico. O individuo, por sua vez, é pulverizado para ser substituído por um número cada vez maior de peças destacadas, estudadas pelas diferentes disciplinas. E o preço que o indivíduo tem de pagar por um conhecimento de certo tipo que ele mesmo instaura.

As causas do big-bang disciplinar são várias e poderiam ser objeto de diversos tratados eruditos. Mas a causa fundamental pode facilmente ser descoberta: o big-bang disciplinar responde às necessidades de uma tecnociência sem freios, sem valores, sem outra finalidade que a eficácia pela eficácia. Este big-bang disciplinar tem enormes conseqüências positivas, pois conduz ao aprofundamento sem precedente do conhecimento do universo exterior e assim contribui volens nolens para a instauração de uma nova visão do mundo. Pois um bastão sempre tem duas extremidades. Quando um balanço vai longe demais num sentido, sua volta e inexorável. Paradoxalmente, a complexidade instalou-se no próprio coração da fortaleza da simplicidade: a física fundamental. De fato, nas obras de vulgarização, diz-se que a física contemporânea e uma física onde reina uma maravilhosa simplicidade estética da unificação de todas as interações físicas através de alguns "tijolos" fundamentais: quarks, leptons ou mensageiros. Cada descoberta de um novo tijolo, prognosticada por esta teoria, é saudada com a atribuição de um prêmio Nobel e apresentada como um triunfo da simplicidade que reina no mundo quântico. Mas para o físico que pratica a essência desta ciência, a situação mostra-se infinitamente mais complexa. Os fundadores da física quântica esperavam que algumas partículas pudessem descrever, enquanto tijolos fundamentais, toda a complexidade física. No entanto, já por volta de 1960 este sonho desmoronou: centenas de partículas foram descobertas graças aos aceleradores de partículas. Foi proposta uma nova simplificação com a introdução do princípio do bootstrap nas interações fortes: há uma espécie de “democracia” nuclear, todas as partículas são tão fundamentais quanto as outras e uma partícula é aquilo que ela é porque todas as outras partículas existem ao mesmo tempo. Esta visão de autoconsistência das partículas e de suas leis de interação, fascinante no plano filosófico, iria por sua vez desabar devido à inusitada complexidade das equações que traduziam esta autoconsistência e à impossibilidade prática de encontrar suas soluções.

A introdução de subconstituintes dos hádrons (partículas de interações fortes) os quarks — iria substituir a proposta do bootstrap e introduzir assim uma nova simplificação no mundo quântico.
Esta simplificação levou a uma simplificação ainda maior, que domina a física de partículas atualmente: a procura de grandes teorias de unificação e de superunificação das interações físicas. Contudo, ainda assim, a complexidade não demorou em mostrar sua onipotência. Por exemplo, segundo a teoria das supercordas na física de partículas, as interações físicas aparecem como sendo muito simples, unificadas e submetendo-se a alguns princípios gerais se descritas num espaço tempo multidimensional e sob uma energia fabulosa, correspondendo à massa dita de Planck. A complexidade surgiu no momento da passagem para o nosso mundo, necessariamente caracterizado por quatro dimensões e por energias acessíveis muito menores. As teorias unificadas são muito poderosas no nível dos princípios gerais, mas são bastante pobres na descrição da complexidade de nosso próprio nível. Alguns resultados matemáticos rigorosos até indicam que esta passagem de uma única e mesma interação unificada para as quatro interações físicas conhecidas é extremamente difícil e até mesmo impossível. Um número enorme de questões matemáticas e experimentais, de extraordinária complexidade, permanece sem resposta. A complexidade matemática e a complexidade experimental são inseparáveis na física contemporânea.

É interessante observar, de passagem, que a teoria das supercordas surgiu graças à teoria das cordas que, por sua vez, apareceu graças à abordagem do bootstrap. Na teoria das cordas, os hádrons são representados por cordas vibrantes que carregam quarks e antiquarks em suas extremidades. Por exemplo, um meson é representado por urna corda tendo, como um bastão, duas extremidades: um quark e um antiquark. É impossível separar as duas extremidades de uma corda: cortando-se uma corda não é um quark e um antiquark que conseguimos mas várias cordas, todas elas com duas extremidades. Se alguém ficar obcecado pela separação das duas extremidades de uma corda, vai chocar-se com uma impossibilidade teórica que carrega a designação erudita de “confinamento”: os quarks e antiquarks ficam aprisionados para sempre no interior dos hádrons. Seria necessária uma energia infinita para afastar e separar completamente um quark e um antiquark. Esta propriedade paradoxal, e não obstante simples, esconde, de fato, uma infinita complexidade de interação entre as partículas quânticas. Os físicos ainda não encontraram uma demonstração matemática rigorosa do confinamento dos quarks. Aliás, a complexidade se mostra por toda parte, em todas as ciências exatas ou humanas, rígidas ou flexíveis.

A biologia e a neurociência, por exemplo, que vivem hoje um rápido desenvolvimento, revelam-nos novas complexidades a cada dia que passa e assim caminhamos de surpresa em surpresa.

O desenvolvimento da complexidade é particularmente espantoso nas artes. Por uma interessante coincidência, a arte abstrata aparece ao mesmo tempo em que a mecânica quântica. Porém, em seguida, um desenvolvimento cada vez mais caótico parece presidir pesquisas cada vez mais formais. Salvo algumas exceções notáveis, o sentido desaparece em proveito da forma. O rosto humano, tão belo na arte do Renascimento, decompõe-se cada vez mais até desaparecer complemente no absurdo e na feiúra. Uma nova arte — a arte eletrônica — aparece para substituir gradualmente a obra estética pelo ato estético. Na arte, como em outros campos, o bastão sempre tem duas extremidades. A complexidade social sublinha, até o paroxismo, a complexidade que invade todos os campos do conhecimento. O ideal de simplicidade de uma sociedade justa, baseada numa ideologia científica e na criação de um “homem novo”, desabou sob o peso de uma complexidade multidimensional. O que restou, baseado na lógica da eficácia pela eficácia, não é capaz de nos propor outra coisa senão o “fim da História”. Tudo se passa como se já não houvesse futuro. E se não há mais futuro, a lógica sã nos diz que já não há presente. O conflito entre a vida individual e a vida social aprofunda-se num ritmo acelerado. E como podemos sonhar com uma harmonia social baseada na aniquilação do ser interior?

Edgar Morin tem razão quando assinala a todo momento que o conhecimento do complexo condiciona uma política de civilização. O conhecimento do complexo, para que seja reconhecido como conhecimento, passa por uma questão preliminar: a complexidade da qual falamos seria uma complexidade desordenada, e neste caso seu conhecimento não teria sentido ou esconderia uma nova ordem e uma simplicidade de uma nova natureza que justamente seriam o objeto do novo conhecimento? Trata-se de escolher entre um caminho de perdição e um caminho de esperança.

Teria a complexidade sido criada por nossa cabeça ou se encontra na própria natureza das coisas e dos seres? O estudo dos sistemas naturais nos dá uma resposta parcial a esta pergunta: tanto uma como outra. A complexidade das ciências é antes de mais nada a complexidade das equações e dos modelos. Ela é, portanto, produto de nossa cabeça, que é complexa por sua própria natureza. Porém, esta complexidade é a imagem refletida da complexidade dos dados experimentais, que se acumulam sem parar. Ela também está, portanto na natureza das coisas.

Além disso, a física e a cosmologia quânticas nos mostram que a complexidade do Universo não é a complexidade de uma lata de lixo, sem ordem alguma. Uma coerência atordoante reina na relação entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Um único termo está ausente nesta coerência: a abertura do finito - o nosso. O indivíduo permanece estranhamente calado diante da compreensão da complexidade. E com razão, pois fora declarado morto. Entre as duas extremidades do bastão — simplicidade e complexidade —, falta o terceiro incluído: o próprio indivíduo.

Uma nova visão do mundo: a transdisciplinaridade

O processo de declínio das civilizações é extremamente complexo e suas raízes estão mergulhadas na maiscompleta obscuridade. É claro que podemos encontrar várias explicações e racionalizações superficiais, sem conseguir dissipar o sentimento de um irracional atuando no próprio cerne deste processo. Os atores de determinada civilização, das grandes massas aos grandes líderes, mesmo tendo alguma consciência do processo de declínio, parecem impotentes para impedir a queda de sua civilização. Uma coisa é certa: uma grande defasagem entre as mentalidades dos atores e as necessidades internas de desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre acompanha a queda de uma civilização. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os saberes que uma civilização não para de acumular não pudessem ser integrados no interior daqueles que compõem esta civilização. Ora, afinal é o ser humano que se encontra ou deveria se encontrar no centro de
qualquer civilização digna deste nome. O crescimento sem precedente dos conhecimentos em nossa época torna legítima a questão da adaptação das mentalidades a estes saberes. O desafio é grande, pois a expansão contínua da civilização de tipo ocidental por todo o planeta torna sua queda equivalente a um incêndio planetário sem termo de comparação com as duas primeiras guerras mundiais. Para o pensamento clássico só existem duas soluções para sair de uma situação de declínio: a revolução social ou o retorno a uma suposta “idade de ouro”.

A revolução social já foi tentada no decorrer do século que está acabando e seus resultados foram catastróficos. O homem novo não passou de um homem vazio e triste. Quaisquer que sejam os retoques cosméticos que o conceito de “revolução social” sofrer no futuro próximo, eles não poderão apagar de nossa memória coletiva aquilo que efetivamente foi experimentado.

O retorno à idade de ouro ainda não foi tentado, pela simples razão de que a idade de ouro não foi encontrada. Mesmo se supormos que esta idade de ouro tenha existido em tempos imemoriais, este retorno deveria necessariamente se fazer acompanhar por uma revolução interior dogmática, imagem espelhada da revolução social. Os diferentes integrismos religiosos que cobrem a superfície da terra com seu manto negro são um mau presságio da violência e do sangue que poderia jorrar desta caricatura de “revolução interior”. No entanto, como sempre, há uma terceira solução. Esta terceira solução é o objeto do presente manifesto. A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupõe que estes saberes sejam inteligíveis, compreensíveis. Todavia, ainda seria possível existir uma compreensão na era do big-bang disciplinar e da especialização exagerada?

Um Pico de la Mirandola é inconcebível em nossa época. Dois especialistas na mesma disciplina têm, hoje em dia, dificuldade em compreender seus resultados recíprocos. Isto nada tem de monstruoso, na medida em que é a inteligência coletiva da comunidade ligada a esta disciplina que a faz progredir e não um único cérebro que teria de conhecer todos os resultados de todos seus colegas-cérebros, o que é impossível. Pois, hoje em dia, existem centenas de disciplinas. Como poderia um físico teórico de partículas dialogar seriamente com um neurofisiologista, um matemático com um poeta, um biólogo com um economista, um político com um especialista em informática, exceto sobre generalidades mais ou menos banais? E, no entanto, um verdadeiro líder deveria poder dialogar com todos ao mesmo tempo. A linguagem disciplinar é uma barreira aparentemente intransponível para um neófito. E todos somos neófitos uns dos outros. Seria a Torre de Babel inevitável?

No entanto, um Pico de La Mirandola em nossa época é concebível na forma de um supercomputador no qual poderíamos injetar todos os conhecimentos de todas as disciplinas. Este supercomputador poderia tudo saber, mas nada compreender. O usuário deste supercomputador não estaria em melhor situação que o próprio supercomputador. Ele teria acesso instantâneo a não importa que resultado de não importa qual disciplina, mas seria incapaz de compreender seus significados e muito menos de fazer ligação entre os resultados das diferentes disciplinas. Este processo de babelização não pode continuar sem colocar em perigo nossa própria existência, pois faz com que qualquer líder se torne, queira ou não, cada vez mais incompetente. Um dos maiores desafios de nossa época, como, por exemplo, os desafios de ordem ética, exigem competências cada vez maiores. Mas a soma dos melhores especialistas em suas especialidades não consegue gerar senão uma incompetência generalizada, pois a soma das competências não é a competência: no plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio. Ora, o que vem a ser um líder, individual ou coletivo, senão aquele que é capaz de levar em conta todos os dados do problema que examina?

A necessidade indispensável de laços entre as diferentes disciplinas traduziu-se pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade.

A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de Giotto pode ser estudado pela ótica da história da arte, em conjunto com a da física, da química, da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou ainda, a filosofia marxista pode ser estudada pelas óticas conjugadas da filosofia, da física, da economia, da psicanálise ou da literatura. Com isso, o objeto sairá assim enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria disciplina é aprofundado por uma fecunda contribuição pluridisciplinar. A pesquisa pluridisciplinar traz um algo a mais à disciplina em questão (a história da arte ou a filosofia, em nossos exemplos), porém este “algo a mais” está a serviço apenas desta mesma disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita na estrutura da pesquisa disciplinar. A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina para outra. Podemos distinguir três graus de interdisciplinaridade:

a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear transferidos para a medicina levam ao aparecimento de novos trata mentos para o câncer; b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência de métodos da lógica formal para o campo do direito produz análises interessantes na epistemologia do direito; c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência dos métodos da matemática para o campo da física gerou a física-matemática; Os da física de partículas para a astrofísica, a cosmologia quântica; os da matemática para os fenômenos meteorológicos ou para os da bolsa, a teoria do caos; os da informática para a arte, a arte informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar Pelo seu terceiro grau, a interdisciplinaridade chega a contribuir para o big-bang disciplinar. A transdisciplinaridade como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento. Haveria alguma coisa entre e através das disciplinas e além delas? Do ponto de vista do pensamento clássico, não há nada, absolutamente nada, O espaço em questão é vazio, completamente vazio, como o vazio da física clássica. Mesmo renunciando à visão piramidal do conhecimento, o pensamento clássico considera que cada fragmento da pirâmide, gerado pelo big-bang disciplinar, é uma pirâmide inteira; cada disciplina proclama que o campo de sua pertinência é inesgotável. Para o pensamento clássico, a transdisciplinaridade é um absurdo por que não tem objeto. Para a transdisciplinaridade por sua vez, o pensamento clássico não é absurdo, mas seu campo de aplicação é considerado como restrito. Diante de vários níveis de Realidade, o espaço entre as disciplinas e além delas está cheio, como o vazio quântico está cheio de todas as potencialidades: da partícula quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados que condicionam o aparecimento da vida no Universo.

A estrutura descontínua dos níveis de Realidade determina a estrutura descontínua do espaço transdisciplinar que, por sua vez, explica porque a pesquisa transdisciplinar é radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, mesmo sendo complementar a esta. A pesquisa disciplinar diz respeito, no máximo a um único e mesmo nível de Realidade; aliás, na maioria dos casos, ela só diz respeito a fragmentos de um único e mesmo nível de Realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade se interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de Realidade ao mesmo tempo. A descoberta desta dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar.
Embora a transdisciplinaridade não seja uma nova disciplina, nem uma nova hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua vez, é iluminada de maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Neste sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagonistas, mas complementares. Os três pilares da transdisciplinaridade os níveis de Realidade, a lógica do terceiro incluso e a complexidade — determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar. Há um paralelo surpreendente entre os três pilares da transdisciplinaridade e os três postulados da ciência moderna.

Os três postulados metodológicos da ciência moderna permaneceram imutáveis de Galileu até os nossos dias, apesar da infinita diversidade dos métodos, teorias e modelos que atravessaram a história das diferentes disciplinas científicas. No entanto, uma única ciência satisfaz inteira e integralmente os três postulados: a física. As outras disciplinas científicas só satisfazem parcialmente os três postulados metodológicos da ciência moderna. Todavia, a ausência de uma formalização matemática rigorosa da psicologia, da historia das religiões e de um número enorme de outras disciplinas não leva à eliminação dessas disciplinas do campo da ciência. Mesmo as ciências de ponta, como a biologia molecular, não podem pretender, ao menos por enquanto, uma formalização matemática tão rigorosa como a da física. Em outras palavras, há graus de disciplinaridade proporcionais à maior ou menor satisfação dos três postulados metodológicos da ciência moderna. Da mesma forma, a maior ou menor satisfação dos três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar gera diferentes graus de transdisciplinaridade. A pesquisa transdisciplinar correspondente a um certo grau de transdisciplinaridade se aproximará mais da multidisciplinaridade (como no caso da ética); num outro grau, se aproximará mais da interdisciplinaridade (como no caso da epistemologia); e ainda num outro grau, se aproximará mais da disciplinaridade. A disciplinaridade a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único e mesmo arco: o do Conhecimento.

Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar não é antagonista mas complementar à pesquisa pluridisciplinar e interdisciplinar. A transdisciplinaridade é, no entanto, radicalmente distinta da pluri e da interdisciplinaridade, por sua finalidade: a compreensão do mundo presente, impossível de ser inscrita na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da interdisciplinaridade sempre é a pesquisa disciplinar. Se a transdisciplinaridade é tão freqüentemente confundida com a inter e a pluridisciplinaridade (como, aliás, a
interdisciplinaridade é tão freqüentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isto se explica em grande parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as disciplinas. Esta confusão é muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes finalidades destas três novas abordagens. Embora reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade em relação à disciplinaridade, à pluridisciplinaridade e à interdisciplinaridade, seria extremamente perigoso absolutizar esta distinção, pois neste caso a transdisciplinaridade seria esvaziada de todo seu conteúdo e sua eficácia na ação reduzida a nada. O caráter complementar das abordagens disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar é evidenciado de maneira fulgurante, por exemplo, no acompanhamento dos agonizantes. Esta atitude relativamente nova de nossa civilização é extremamente importante, pois, reconhecendo o papel de nossa morte em nossa vida, descobrimos dimensões insuspeitas da própria vida. O acompanhamento dos agonizantes não pode dispensar uma pesquisa transdisciplinar, na medida em que a compreensão do mundo presente passa pela compreensão do sentido de nossa vida e do sentido de nossa morte neste mundo que é o nosso.

Nota do blog: Link ao arquivo eletrônico (.PDF)
Políticas Educacionais, Profissionalização e Saberes Docentes: Representações Sociais de Alunos de Pedagogia.

Apresentado no IX Congresso Nacional de Educação - EDUCERE e
III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia (outubro/09)
http://www.4shared.com/document/2tc9qZuU/Transdiciplinaridade.html



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